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Show online pago e até futebol com fãs: como os músicos estão se virando

Tomás Bertoni toca com a Scalene no último Rock in Rio - Mauricio Santana/Getty Images
Tomás Bertoni toca com a Scalene no último Rock in Rio Imagem: Mauricio Santana/Getty Images

Amanda Cavalcanti

Colaboração para o UOL, em São Paulo

27/03/2020 04h00

Quando as notícias sobre o contágio do novo coronavírus ter chegado ao Brasil começaram a pipocar, o quarteto brasiliense Scalene levou um susto ao ver todos os seus shows marcados para os próximos meses sendo cancelados. Entre shows já anunciados e negociações em andamento, 15 apresentações caíram.

Com a impossibilidade de se apresentarem ao vivo, logo surgiu outra ideia: gravar o novo álbum da banda. Mas a doença se alastrava pelo país e, ao longo das semanas, medidas mais drásticas foram tomadas, como o fechamento de grande parte do comércio e o isolamento horizontal no país inteiro. "Logo, entendemos que até sair de casa para ir para o estúdio seria correr risco e colocar os outros em risco", fala Tomás Bertoni, um dos guitarristas da Scalene. "Neste começo, foi confuso até explicar que não adiantaria adiar shows pra junho, julho porque não temos uma previsão de normalização."

A Scalene não foi, de longe, a única banda afetada: ao longo do mês de março, vimos incontáveis shows, nacionais e internacionais, grandes —alô, Lollapalooza e Billie Eilish— e pequenos, serem cancelados e lançamentos de álbuns sendo adiados.

A perspectiva era assustadora. Os artistas tomaram uma atitude rápida para tentar lidar com a ausência de shows, realizando lives via Instagram, YouTube e Facebook de shows acústicos e DJ sets para entreter os fãs. Mas o tédio no isolamento passou a ser uma preocupação secundária conforme a situação piorava e uma só questão começou a tomar a cabeça de trabalhadores informais por todo o país: como se manter financeiramente durante uma crise dessas?

"A grana vinda de shows é a principal fonte de renda dos artistas, junto com o merchandising", fala Fernando Dotta, um dos donos do selo independente paulistano Balaclava Records e da casa de shows Breve, localizada na zona oeste de São Paulo. "Enquanto não há shows, as pessoas têm cada vez mais quebrado cabeça de como resolver esse problema."

Hora de colocar a criatividade em prática

Em vez de ser mais uma bolinha no congestionamento de lives que tomam o Instagram, a Scalene começou na última quarta (25) o projeto Respirando na Quarentena, que conta não apenas com pocket shows do grupo mas outras atividades, como participação de convidados e conversas sobre os trabalhos da banda.

Na quarta-feira, o grupo assistiu junto com os fãs à final da Copa do Mundo de 1970, em que o Brasil foi campeão em cima da Itália.

Ficamos falando sobre esporte, sobre ditadura, interagindo com os fãs e assistindo um futebol, que é algo que gostávamos de fazer na quarta-feira à noite

Tomás Bertoni, guitarrista da Scalene

O projeto acontece em um grupo secreto no Facebook que só pode ser acessado através de uma doação de R$ 12 mensais. O valor também tem como objetivo a viabilização do projeto The Street Store DF, que beneficia pessoas em vulnerabilidade social e é apadrinhado pela banda desde 2017. "Não é só sobre tentar nos manter, mas também manter a nossa equipe e levantar uma grana para tentar doar para um projeto que apoiamos faz tempo. Não queremos lucrar com isso, mas também precisamos arcar com os custos", diz o guitarrista.

Fernando Dotta comenta que a intensificação de conteúdo disponibilizado ao público, embora possa ficar gerar uma saturação, é importante para fãs fiéis. "Apesar de não haver shows, as pessoas estão sedentas por material. Essa intensificação tem um impacto forte nos ouvintes mensais, esse é um dos motivos pelos quais não estamos descartando fazer lançamentos nesse período", diz, citando a pequena parcela que os músicos recebem dos serviços de streaming.

A Balaclava Records funciona não apenas como selo, mas também produtora de diversos shows nacionais e internacionais e inclusive de seu próprio festival, o Balaclava Fest. Com os cancelamentos e adiamentos, Dotta e seu sócio, Rafael Farah, foram afetados em diversas frentes —como selo, como produtora, como casa de shows. Os três shows que eles trariam neste primeiro semestre - da promissora banda de rock inglesa Black Midi, do duo norte-americano Black Pumas e do trio de pop britânico Kero Kero Bonito— foram desmarcados ou adiados.

"É um momento bem difícil, porque não conseguimos planejar muito para o futuro e o nosso trabalho é feito com muita antecedência. Os artistas que trazemos pro Brasil às vezes vêm de conversas de anos com bookers, as pessoas que fazem o agendamento dos shows", fala o produtor.

A solução da Balaclava têm sido focar em outras frentes do selo: lançamentos de singles (como o da banda Terno Rei com o trio Tuyo que será lançado nesta sexta, 27), reformulação do site do selo para a venda de merchandising, estimular o crowdfunding e investir em lives mais funcionais e informacionais. Na última sexta-feira (21), o selo também disponibilizou todo o seu catálogo para venda no Bandcamp.

Esta decisão foi tomada graças a uma ação da plataforma, que, por um dia, direcionou todo o lucro das vendas diretamente para os artistas, não cobrando a taxa usual de operação. "Nós tivemos que adaptar os valores ao que faz mais sentido para o mercado brasileiro, colocando os discos a venda por US$ 3 ou US$ 4 (R$ 15 a R$ 20). Mas é uma medida bem positiva, e seria ideal que outras plataformas também tomassem para que tudo chegue no artista com o máximo valor que puder", diz Dotta.

Tomás concorda: "O quanto a intensificação de plays em plataformas como o Spotify ajuda é um pouco superestimado, não é o que vai resolver. É claro que toda quantia ajuda, mas se o Spotify, o Deezer e o YouTube fizessem campanhas como a do Bandcamp seria uma parada que daria um impacto, porque o play em si tem um valor muito pequeno", fala.

Ainda não há nenhuma medida de repasse de lucros com plays para artistas por parte de nenhuma das plataformas citadas pelo músico, mas as empresas estão cientes do que está acontecendo e começam a se movimentar para ajudar os artistas. Na quarta-feira (25), o Spotify anunciou o projeto Spotify COVID-19 Music Relief, com o objetivo de juntar US$ 10 milhões para ONGs que promovem alívio financeiro para comunidades musical necessitadas, como MusiCares, PRS Foundation e Help Musicians.

Sandra Gimenez, diretora de parcerias de música do YouTube para a América Latina, também garante que a plataforma está pensando em maneiras de ajudar os artistas. "Estamos ajudando todos os nossos parceiros, incluindo gravadoras, artistas, compositores e produtores, a usar o live streaming de forma fácil e direta em seus canais do YouTube para se comunicar com seus públicos, por exemplo. As lives são monetizadas dentro da plataforma". A plataforma também tem ajustado as campanhas publicitárias para que os repasses aos artistas sejam maiores.

As previsões para o futuro são incertas, mas todos os lados parecem acreditar que a indústria da música ainda passará por grandes baques ao longo dos próximos meses. Porém a arte, que neste momento serve de grande alívio, também pode servir de pontapé para que pensemos em como pode ser diferente a partir de agora.

As pessoas vão entender que a conta do mundo não está fechando, que o formato em que nós nos organizamos não está fazendo sentido e que isso pode dar merda como está dando agora (risos). Acho que a música pode estar na vanguarda dessa nova organização de mundo