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30 anos após 'Vogue', drags prometem: 'Não vamos mais sair do mainstream'

Madonna no clipe de "Vogue" que completa 30 anos em 2020 - Youtube/Reprodução
Madonna no clipe de "Vogue" que completa 30 anos em 2020 Imagem: Youtube/Reprodução

Daniel Palomares

do UOL, em São Paulo

27/03/2020 13h28

"Strike a pose!", ordena Madonna, enquanto os primeiros (e inconfundíveis) acordes de "Vogue" começam a ser tocados. A canção, um dos maiores hits da cantora, com direito a liderar a parada musical de 30 países diferentes e se tornar o single mais vendido de 1990, completa 30 anos em 2020 em um cenário bem diferente do seu lançamento.

Naquela época, o universo das drag queens e da cultura "ballroom" ainda não tinham ganhado o mundo e viviam restrito às boates GLS (sim, naquela época, se dizia "gays, lésbicas e simpatizantes"). Hoje, Pabllo Vittar, a drag queen mais seguida no Instagram no mundo inteiro, emplaca todas as músicas de seu novo álbum, "111", entre as 50 mais ouvidas do Brasil no Spotify.

Esses últimos 30 anos representaram uma abertura nunca antes vista para artistas LGBTQI+ (é, a sigla aumentou bastante), em especial as drag queens que, lá em 1990, estavam apenas despontando para o grande público em "Vogue". O UOL conversou com dois dos maiores nomes da música drag atual, Pabllo Vittar e Gloria Groove, e duas queens com um legado de mais de 20 anos, Marcia Pantera e Ikaro Kadoshi, para relembrar o desenrolar dessas três últimas décadas e entender o grande impacto de Madonna para este movimento.

'What are you looking at?'

Com o lançamento de "Vogue", Madonna colocou os holofotes na comunidade LGBTQI+, negra e latina de Nova York. Os jovens da época, sendo drag queens ou não, participavam dos "balls" —os bailes em boates— onde desfilavam com looks ostentadores, participavam de competições de dança e performance e, principalmente, podiam se expressar livremente longe do preconceito. Foi nesse cenário que nasceu o "voguing", estilo de dança que Madonna incorporou ao videoclipe da música.

O principal envolvido nesse processo foi o jovem José Gutierrez, na época com apenas 18 anos. Frequentador dos "balls", ele coreografou o clipe de Madonna, participou de sua famosa turnê "The Blond Ambition Tour" e ainda de seu documentário "Na Cama com Madonna".

Drag queen há 20 anos, Ikaro Kadoshi reforça a importância de Madonna ter dado voz a jovens tão marginalizados. "Madonna sempre teve essa questão de trazer para o mainstream o que era underground. Transgressora, a líder revolucionária. Ela escolheu aquela pessoa negra, gay, latina, da periferia para mostrar esse movimento. Foi muito consciente. Poderia se apropriar de forma inescrupulosa, mas ela fez questão de trazer pessoas para sua convivência. Ela ouviu o que aquelas pessoas tinham a dizer. Foi uma maneira de trazer a beleza e a revolução daquelas pessoas", conta, em papo com o UOL.

O 'voguing' é um estilo de vida. Aqueles jovens que o criaram não tiveram o luxo de ver a forma como tudo evoluiu até aos dias de hoje. Muitos deles já não estão entre nós. E são tantas vezes esquecidos. Ninguém faz o trabalho de casa para saber quem foram os pioneiros do movimento. O 'voguing' nasceu da esperança e do sonho daquela que era vista como a classe mais renegada da comunidade gay; nasceu dos jovens que eram rejeitados pelas suas famílias, numa sociedade que olhava para eles como os culpados pela Aids

José Gutierrez, para a Vogue Portugal, em 2019

"Eu me descobri gay com 9 anos. 'Vogue' veio um ano depois. Foi libertador. Desde que eu me conheço por gente, eu dublava a música em casa, colocava toalha na cabeça. Era uma sensação de empoderamento pessoal, independente de sexualidade. Interpretar 'Vogue' me dava um poder que outras músicas não me davam", relembra Ikaro.

Marcia Pantera, atuante como drag queen desde 1988 e autoproclamada precursora do "bate-cabelo", ainda relembra a passagem da turnê de Madonna pelo Brasil em 1993.

Estava fazendo show em uma boate de São Paulo e os dançarinos dela foram lá. 'Vogue' era o hit do momento. Todo mundo cantava e dançava o tempo todo. Os jovens de hoje não têm noção de como era maravilhoso.

Mas o impacto da música não parece ter se perdido com o passar dos anos. Mesmo nascendo depois de "Vogue", Pabllo Vittar e Gloria Groove, ambas com 25 anos, registraram o mesmo encantamento ao ter contato com o hit pela primeira vez. "Eu amei ver o clipe e ouvir a música, mesmo pequena!", conta Pabllo.

Era muito provocativo e ousado. Ela impulsionou o movimento numa era onde se posicionar era colocar absolutamente tudo em jogo. O resultado de assumir tal risco foi que ela se tornou uma lenda

Gloria Groove

'Strike a pose!'

Hoje, o espaço para a comunidade LGBTQI+ e as drag queens na mídia é mais promissor. Em sua 12ª temporada, "RuPaul's Drag Race" se tornou um fenômeno mundial, ganhando versões em outros países além dos EUA e faturando dezenas de prêmios Emmy, o mais prestigioso da televisão americana.

No Brasil, drag queens despontaram especialmente no cenário musical. Pabllo Vittar, Gloria Groove, Lia Clark, Aretuza Lovi e outras rainhas ganham as paradas de sucesso a cada ano, arrastam multidões em seus blocos de Carnaval e fazem parcerias com grandes nomes da nossa música como Léo Santana e Ivete Sangalo.

"É importante que ocupemos esses espaços. Não só a cultura drag, mas a cultura queer como um todo vem ganhando força", analisa Pabllo. "Todos os dias sinto que vivo algo que é ao mesmo tempo o meu sonho, o meu trabalho e também um grande desafio de evolução humana —e aos olhos do público! É um prazer fazer da minha vida um exemplo e também fazer do meu corpo um experimento artístico ilimitado", comemora Gloria.

Mas a tal "dominação drag" não é defendida por todos:

Eu acho que não estamos dominando o mainstream, estamos tomando o nosso lugar de direito. A drag queen nasceu mainstream. Mas com o passar dos séculos, com a igreja, a revolução cultural, aquilo foi obrigando as drags a viver em guetos. Quando vemos drag queens na TV, em comerciais, é voltar ao seu lugar de direito

Ikaro Kadoshi

"Quando eu comecei, não imaginava isso de forma alguma. Nós estamos provando que existe lugar para uma drag queen num programa de TV, na música internacional. O mainstream é a nossa casa, o mundo que impediu as drag queens de estarem ali", reforça ela, que apresenta o programa "Drag Me as Queen", no canal E!, ao lado das drags Rita Von Hunty e Penelopy Jean.

Eu venho de uma geração que nascia e crescia e sempre pensava estar fadada ao gueto, às boates. Drag estava além do que as pessoas eram capazes de entender. Eu sou a testemunha viva e ocular de uma fase de desesperança para a fase de dominação. Agora não vamos sair mais daqui, do mainstream, nosso lugar de direito

Ikaro Kadoshi

Por sua vez, Marcia comemora as novas conquistas, mas ainda lamenta as dificuldades de mais drag queens conquistarem seu lugar ao sol. "É incrível que as pessoas nos enxerguem. Mas, infelizmente, no nosso país não vamos ter um programa com a visibilidade que a RuPaul tem. Temos emissoras que poderiam investir mais nisso, que poderiam fazer um programa maravilhoso. Temos drags para apresentar, para estar no júri... Mas o brasileiro é preconceituoso e aí fica difícil", pondera.

"Por que a Marcia Pantera não está na TV, tendo oportunidades com uma carreira que já dura tantos anos? Quando eu comecei, todas as transformistas e travestis me ajudaram. Quando eu encontro com drag queens no camarim, eu dou toque para todas elas. Eu tive isso lá atrás, mas hoje em dia não vejo essa ajuda entre nós. Virou uma rivalidade. Uma tentando sobressair a outra", reclama.

'C'mon! Vogue!'

E o que podemos esperar dos próximos 30? Quais desafios ainda precisamos enfrentar e quais as expectativas para os próximos anos?

"Parece que foi um piscar de olhos! Pisquei e passaram-se 30 anos!", brinca Ikaro. "A gente ganhou voz e agora pode conversar com as pessoas, dar oportunidade de nos conhecerem. Agora conseguimos fazer nosso papel político, pessoal e artístico. A drag é uma aglomeração de várias artes. Mesmo num país conservador, temos muitas pessoas trabalhando para derrubar as barreiras do preconceito. Vivemos uma corrente do bem diária".

Nós temos um alvo nas nossas costas por viver como vivemos, mas quando você é forjado num país como o nosso, a gente aprende que o medo não pode nos impedir de querer

Ikaro Kadoshi

"Eu faço meu trabalho através da música com muito amor e dedicação. Temos que acreditar no nosso potencial", reforça Pabllo, que em 2019, se apresentou em paradas do Orgulho LGBT nos EUA, na Europa e até na Austrália. "Trabalhamos muito e muita gente também lutou antes de nós. Acho que esse é o ponto principal, lutaram por nós e continuaremos assim para que as próximas gerações tenham espaço para abrir novos caminhos também", torce.

"Espero que através da música e da arte consigamos mudar drasticamente as estatísticas, pois infelizmente o Brasil continua sendo um dos países mais perigosos do mundo para ser LGBTQI+. Cada dia mais paz e justiça para os nossos!", deseja Gloria Groove.

Aos 50 anos, Marcia não tem uma visão tão positiva sobre o cenário atual e se preocupa com o que está por vir. "Eu já vi muita coisa. Consigo enxergar muito além do que você deve imaginar. O povo continua preconceituoso, mas hoje as pessoas acharam uma máscara. Elas precisam do gay maquiador, do gay advogado, do gay médico... Todo mundo está usando máscaras. As afeminadas são as que mais apanham, o gay 'hominho' não. O gay se transformou para não sofrer violência", explica.

O mundo não mudou. Avançamos uns 10% apenas. As pessoas não estão tão humanas quanto a gente acha. Os LGBTQI+s evoluíram para colocar a cara na rua, mas quanto mais colocamos, mais estão nos matando. Não vejo essa revolução gigantesca. A gente elegeu um presidente que dita o ódio e o preconceito. Retrocedemos. A gente não precisa ser entendido, precisa ser respeitado. O mundo só vai mudar quando as pessoas tiverem uma percepção melhor das outras

Marcia Pantera

"O dia que nos reunirmos para melhorar o que faz mal para a sociedade como um todo, vamos realmente revolucionar. Se pensarmos só em nós mesmos, nada vai mudar. Nos próximos 30 anos, espero que a gente aprenda nosso papel como ser humano: cuidar do mundo como se deve, do outro, de si mesmo. Vou usar uma frase da RuPaul: se a gente não se amar, a gente não consegue se doar ao outro. Se a gente se amasse com nossos defeitos, qualidades e limitações, a gente conseguiria amar ao próximo em sua existência", conclui Ikaro.