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Crise na Ancine paralisa filmes e séries e compromete lançamentos para 2020

Filme Benzinho, de Gustavo Pizzi, vence Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2019 - Mario Miranda Filho/Divulgação
Filme Benzinho, de Gustavo Pizzi, vence Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2019 Imagem: Mario Miranda Filho/Divulgação

Carlos Minuano

Colaboração para o UOL

21/08/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Linha de financiamento, geralmente aberta nos primeiros meses, ainda não foi liberada
  • Conselho Superior de Cinema não foi definido e empossado
  • Responsável por cerca de 300 mil empregos diretos e indiretos, setor está encolhendo
  • Investidores, como Amazon, podem parar de injetar recursos por fragilização do mercado
  • Indústria audiovisual paga R$ 2,5 bilhões de impostos anuais

Lançamentos de filmes e séries nacionais previstos para 2020 são uma incógnita. Diversas produções estão paradas e seriamente comprometidas sem os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) de 2019, linha de financiamento geralmente aberta nos primeiros meses do ano. Em 2018, de janeiro a agosto, mais de R$ 250 milhões desse fundo já estavam destinados para produções por meio de quatro editais abertos.

Os dois editais de produção do FSA que foram publicados este ano são para investimentos referentes a 2018. Nenhuma linha referente aos recursos de 2019 foi lançada ainda, e não há qualquer previsão para isso. O setor teme que, caso persista a crise na Ancine (Agência Nacional de Cinema), o ano possa terminar sem investimentos do fundo. "Se demorar, perderemos o ano", alerta Leo Edde, presidente do Sicav (Sindicato da Indústria Audiovisual).

A questão é que mesmo sem a extinção da Ancine, que segundo o Ministério da Cidadania será mantida, e com um diálogo aberto entre representantes do setor e governo, a indefinição em torno do órgão permanece. A espera, que já dura meses, causou uma paralisação nos processos de liberação de recursos que ameaça não apenas novos projetos, mas também produções que já estavam em andamento.

Filmes parados

Premiado com o longa documental Ex-Pajé no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2019, realizado na semana passada pela primeira vez em São Paulo, o produtor e diretor Luiz Bolognesi conta que em sua produtora, a Buriti Filmes, três longas estão parados por causa da crise institucional da Ancine. São eles Viajantes do Bosque Encantado, de Alê Abreu (indicado ao Oscar pela animação O Menino e o Mundo); Pedro, de Laís Bodanzky, com Cauã Reymond; e Entre Deuses e Inimigos, do próprio Bolognesi.

Segundo ele, as produções já receberam a maior parte dos recursos, foram filmadas, mas aguardam aportes para finalização que já deveriam ter sido liberados. "Não é falta de recurso, o dinheiro está lá parado há cerca de dez meses, não se sabe por qual motivo", reclamou o cineasta ao UOL. O impasse, segundo ele, gera ainda um efeito cascata, que atinge empresas e profissionais que prestam serviços e que não estão sendo contratados.

Outro longa parado por causa da crise na Ancine é a comédia romântica Conectados, do diretor Marcus Ligocki (do filme Uma Loucura de Mulher), um dos curadores do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. O filme já captou 20% do orçamento, mas tem ainda previsão de recursos do FSA em seu plano de negócios e outro montante por meio de incentivo fiscal via Lei do Audiovisual. "Patrocinadores interessados em investir recuaram, estão receosos, preferem aguardar o posicionamento do governo", diz Ligocki.

O impasse no audiovisual e a paralisação do FSA têm deixado empresas em situação complicada, alerta Andrea Barata Ribeiro, sócia e diretora executiva da O2 Filmes. "Paramos um longa na preparação e tem outros quatro aguardando definições". A via alternativa que a produtora está buscando para alavancar os filmes são as coproduções internacionais. Ainda assim, a previsão de resultados não é das mais animadoras. "Ao invés de a O2 fazer dois ou três longas em um ano, fará, quem sabe, um".

Segundo Andrea, outros braços de negócios é que estão segurando a empresa, como séries de TV, publicidade, pós-produção e ainda um núcleo de tecnologia. Mas ela adverte que o setor passa por um momento bem perigoso. "A maioria das produtoras está em situação muito difícil".

A reportagem do UOL entrou em contato com outras produtoras e distribuidoras, que optaram por não se manifestar. Na avaliação de Leo Edde, presidente do Sicav, a situação é grave, porque nenhum financiamento e investimento do FSA será destinado se o comitê gestor não for convocado, e o Plano Anual de Investimentos 2019 não for votado. Uma crise que, segundo ele, pode comprometer os próximos dois anos.

"É um atraso na indústria como um todo. O audiovisual é uma atividade que depende de volume de produções para ocupar espaços. Teremos um ano de 2020 e 2021 com poucas produções brasileiras, e com menos poder de conquistar público", lamenta o presidente do Sicav.

Produtora encolheu 30%

Com os atrasos nos pagamentos, o setor que era responsável por cerca de 300 mil empregos diretos e indiretos começa a agravar ainda mais o cenário de desemprego no país. A Buriti Filmes, de Luiz Bolognesi e Laís Bodanzky (atual presidente da SPCine) encolheu 30% nos últimos meses. "Tivemos que desligar várias pessoas", diz o diretor de Ex-Pajé.

O cineasta e produtor Luiz Bolognesi - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
O cineasta e produtor Luiz Bolognesi
Imagem: Reprodução/Facebook

A lentidão na liberação de recursos e o travamento no FSA estão compondo um cenário catastrófico, alerta Bolognesi. "Produções estão sendo estranguladas, não conseguimos planejar nem a vida da produtora nem a dos filmes, que precisam ser lançados em datas estratégicas e que dependem de plataformas específicas como o circuito de festivais".

Bolognesi alerta que os problemas afetam produtoras brasileiras pequenas e grandes, e filmes de todos os tipos, inclusive produções alinhados com o pensamento liberal ou comédias sem qualquer viés político. "É um equívoco afirmar que o cinema brasileiro é de esquerda", dispara o cineasta. "Ninguém está conseguindo finalizar seus projetos", reclama o diretor que tem filmes contemplados em processos anteriores mas que não receberam os recursos por causa de questionamentos do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre prestação de contas --as produções foram todas auditadas, mas o pagamento ainda não saiu.

Os questionamentos do TCU começaram em março provocando uma primeira paralisação nas operações da Ancine. Depois disso, os processos chamados de Análise Complementar, para recursos do fomento direto e indireto de filmes já contemplados em editais de anos anteriores, entraram em um ritmo bem lento. O volume de liberação apresenta uma queda em torno de 50%.

Momento de diálogo

Um dos pontos crucias para destravar investimentos está no impasse em torno do Conselho Superior Superior de Cinema, que ainda não foi definido e empossado. Só depois disso será formado o comitê gestor, que por sua vez é quem define políticas do setor, a destinação das verbas do FSA e o plano anual de investimentos.

Produtores e diretores acreditam que a força econômica da indústria audiovisual, que paga R$ 2,5 bi de impostos anuais, retire do debate as questões de viés ideológico. Mas todos concordam também que é preciso agilidade nas negociações porque já correm boatos de que grandes investidores, como a Amazon, possam parar de injetar recursos por causa da fragilização do mercado.

Uma luz no fim do túnel veio de uma reunião realizada há poucos dias entre o ministro da Cidadania Osmar Terra e o chefe da Secom, Fábio Wajngarten, com alguns produtores, entre eles, Rodrigo Teixeira (RT Features), Pedro Buarque (Conspiração) e Fabiano Gullane (Gullane). A pauta da conversa, de acordo com alguns dos participantes, não foi sobre cinema, mas sim sobre economia.

Em entrevista ao UOL, Rodrigo Teixeira, disse que setores do governo estão cientes da importância da manutenção dos empregos gerados pela industria audiovisual. Mas o problema não é só esse, diz o produtor. "Nosso desafio maior é impedir que conteúdos sofram interferência, e de que alguns assuntos não possam ser tratados".

No último dia 15 de agosto, o presidente Jair Bolsonaro afirmou em sua live semanal nas redes sociais ter garimpado na Ancine filmes que estariam prontos para captar recursos, e falou em uma lista com dezenas de projetos que já teriam sido "abortados" por ele. No vídeo, o presidente destacou quatro filmes que, segundo ele, estão entre os que "foram para o saco":

  • Afronte, dos diretores brasilienses Bruno Victor Santos e Marcus Azevedo, baseado em relatos sobre o cotidiano de pessoas LGBT no Distrito Federal;
  • Sexo Reverso, do produtor Mauricio Macedo, inspirado em pesquisa sobre sexualidade da antropóloga Bárbara Ariri com indígenas;
  • Religare Queer, da Válvula Produções, sobre religiosidade e preconceito;
  • Transversais, de Emerson Maranhão, sobre transgêneros no Ceará.

Segundo o presidente, são filmes que não dão bilheteria e que seria "dinheiro jogado fora". Além do espanto com a declaração de Bolsonaro citando seu filme, Emerson Maranhão disse ao UOL que lhe chamou a atenção o equívoco do presidente, que se referiu ao projeto como sendo de um filme para o cinema. "Na realidade é uma série para TV, em cinco episódios, assim como quase todos os outros".

Todos os projetos citados na live de Bolsonaro são finalistas de um edital de produção de conteúdo para TVs públicas de 2018, da EBC (Empresa Brasil de Comunicação), Ancine e BRDE (Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul). Dos quatro destacados, três concorrem na categoria Diversidade de Gênero e o outro no tema Sexualidade. Todos foram classificados para a final, em março deste ano.

Outro ponto que chama a atenção do diretor é que o resultado final do edital ainda não foi divulgado. Maranhão teme não poder realizar seu projeto de série e questiona o fato de Bolsonaro comentar o resultado de um edital que não foi anunciado oficialmente. "Quer dizer que ganhamos, mas não levamos?", indaga o diretor. "E o mais surreal é razão do veto ser justamente por abordar o tema obrigatório para disputar a categoria".