Rap acústico, trap carioca e inglesa fumando um no palco: assim foi o REP Festival
Janeiro chegou comprovando que 2019 vai ser mais um bom ano para o rap nacional (e o rap carioca). No intervalo de apenas uma semana, o público carioca viu esgotar os ingressos do show de lançamento de "Bluesman" de Baco Exu do Blues e "Gigantes" de BK, ambos no Circo Voador. No dia seguinte ao lançamento do BK, foi a vez do REP Festival levar 10.000 pessoas à Barra da Tijuca, no Rio, para conferir um line-up que parecia saído de uma lista "dos dez mais" de alguma plataforma de streaming.
Pelé Mil Flows, Poesia Acústica, Papatinho Chama e Baco Exu do Blues foram os destaques da noite, que também contou com Karol Conká, Oriente, Haikaiss, Recayd Mob, Froid, Cynthia Cruz, Clau, Cortesia da Casa, 3030 e a inglesa IAMDDB. Antes de mais nada, o show consagrou uma novíssima geração do rap nacional destacando as tendências que dominaram as pistas no ano passado e ainda vão dominar ainda mais o mercado.
Celebrando o Ritmo e a Poesia (daí o nome REP), o festival lotou o pilotis da Cidade das Artes com dois palcos principais e um menor com artistas ainda no underground. Apesar de sua proximidade, a arquitetura confusa do local recortado por vários laguinhos fazia com que chegar de um palco a outro fosse extremamente complicado e demorado. Atrasos e mudanças na programação em cima da hora tornaram acompanhar os shows uma tarefa extremamente complicada e árdua tanto para o público quanto para a reportagem. Paciente com as adversidades, os fãs permaneceram até os últimos shows, já de manhã.
Logo depois dos já consagrados niteroienses do Oriente ganharem a galera, foi a fez de outra atração do outro lado da poça vir ao palco. Pelé Milflows é cria de São Gonçalo, seu freestyle ganhou admiração e respeito nas ruas vencendo várias batalhas de rima, como a Batalha do Tanque a a Batalha do Real. Ao passar a integrar a banca do 1Kilo, Pelé teve chance de desenvolver seu lado autoral lançando algumas canções pelo selo e preparando um álbum de inéditas já pronto e em negociação com uma grande gravadora. Enquanto o contrato não é fechado, Pelé segue acumulando milhões de visualizações em seus hits como "Relação" e ganhou a galera do festival com um set que revezando rap acústico com trap, comprovando a versatilidade anunciada no seu apelido "Milflows".
"Aquela menina que achou que não ia rebolar a raba hoje, tá muito enganada", anunciou Pelé antes de tocar "Trabalho Lindo", hit em parceira com WCnoBeat. Não teve ninguém na plateia quem não rebolasse. "Nada seria do Pelé sem vocês". O show contou com participação com mais integrantes da banca do 1Kilo, como DoisP e Pablo Martins, que depois do show me contou que este vai ser o ano dos álbuns solo do 1Kilo e vem com novidades em breve.
Durante toda a noite, ambos palcos estavam sempre lotados, o que variava era a empolgação da plateia. A consagrada Karol Conká fez um show impecável, mas que falhou em empolgar o público barrense, mais animado com as atrações cariocas e os headliners, Baco e IAMDDB. O novo rap carioca, fala de amor e muitas vezes vem numa roupagem acústica, o que o transforma praticamente num Pagorap e a maior prova da estabilidade dessa tendência é o fenômeno Poesia Acústica, que lançou no final do ano passado sua sexta edição, que já conta com quase 40 milhões de visualizações.
A gig do Poesia Acústica reúne alguns dos seus artistas reincidentes e mais relevantes no projeto como Ducon, Kayuá, Azzy, Tiago Mac e Sant e veio de uma turnê com 150 shows realizados em 2018. Os seis cyphers são executados na íntegra e os fãs da série não precisam se preocupar pois os cinco MCs da gig se revezam para cantar a parte dos ausentes. Uma das que mais bagunçou a plateia foi a parte do BK, que até estava na área, mas como público mesmo. Em conversa no camarim, Paulo Alvarez, dono do selo Pineapple conta que mês que vem o Poesia Acústica vai estrear um show novo, com banda, e além de vários perfis.
A Pineapple vai lançar este ano um EP chamado "Jupiter Daiane", com seis músicas com clipes gravados no Uruguai, e participação de César, Chris, Xamã e Knust. Num preconceito imediato com minha pátria mãe, perguntei ao produtor se as filmagens no Uruguai envolviam maconha, e ele respondeu rindo: "Na verdade, tem só uma letra que faz um duplo sentido envolvendo amor e maconha. Na real, a pegada foi mais 'o rap me levou pra viajar'".
Baco Exu do Blues ganhou o palco já no início da madrugada, e fez o show mais profissa da noite, conduzindo a plateia com uma leveza e graciosidade que só o baiano tem. Ele literalmente incendiou o palco (de fato uma falha nos efeitos pirotécnicos quase resultaram num principio de incêndio, rapidamente controlado). "Rio de Janeiro, vocês não tão entendendo, este é o maior festival de rap do Brasil. Vocês têm que fazer a altura, até o final eu quero entrar no 'Guinness Book' como mais gente pulando num show. Vamos fazer o maior metro quadrado de gente pulando neste mundo", botava pilha Baco, que vez por outra atacava de "manobrista de plateia", pedindo pra galera abrir a roda de pogo, pular, ou se afastar e correr em direção ao palco. "Segundo show da tour, uma semana depois do primeiro show e aniversário, vamos bater palminha pra esse gordinho cheiroso que ele merece", chamou uma das backing vocals.
A galera pulou, gritou e pogou, Baco entrou na pilha e chegou a fazer um mosh em cima da plateia. Nas músicas mais calmas a galera recuperava o fòlego, como em "Me desculpa Jay Z" que teve aquele "momento casal abraçadinho cantando junto", também conhecido como "momento Los Hermanos". Pra um MC que ganhou notoriedade esculhambando a cena do eixo Rio e São Paulo na faixa "Sulicídio", ver o cara ganhar a plateia desse jeito duas semanas seguidas é um feito tremendo.
A inglesa IAMDDB é mais uma dessas "one hit wonder" que por algum motivo fez sucesso no Brasil. O motivo é claro: a mina canta muito, é estilosa e ama o Brasil. No intervalo de cada música, ela se direcionava para a plateia falando num português perfeito (com sotaque de Portugal). "Quem é que tem um charuto pra mim?". Rapidamente atendida por algum maconheiro no gargarejo, a inglesa completou: "Vocês também têm charuto? Levanta o seu charuto pro ar, só não pode desmaiar."
Antes de devolver o baseado, ainda disse: "Vou fumar mais um pouco". E agradeceu ao mano com um "eu te amo". Mesmo com toda a simpatia e a galera na mão, a inglesa fez um show frio, errou a entrada de uma música três vezes seguidas, e o hit "Shade" que a consagrou foi executado em playback. Ainda assim a galera amou e a gringa ainda deve carimbar o passaporte mais vezes. No dia seguinte ela gravou no Spotlab (casa de festas e skatepark na ilha da Gigóia, de propriedade do Bob Burnquist) um videoclipe para uma música que aparentemente se chama "Boring".
Começou a amanhecer e o festival ganhava aquela aparência de apocalipse zumbi com lixo e gente chapada empilhada por todo lugar. O DJ embalava vários hits do funk 150bpm quando finalmente o beatmaker Papatinho, da Cone Crew, subiu ao palco para apresentar seu show "Papatinho Chama", que teve como destaques os rappers L7nnon (que naquela mesma madrugada lançava seu álbum de estreia "Podium") e Orochi (um dos destaques do Poesia Acústica 6). Os colegas Batoré e Maomé da Cone Crew também colaram pra cantar "Chama as Amigas", que ganhou um verso novo "Chama o Yuka", em homenagem ao impecável músico e compositor, morto na madrugada anterior.
Em certo momento, Papatinho soltou o beat de "Correria", faixa que produziu em "Gigantes" do BK, e a galera foi à loucura. Os maiores momentos da noite ficaram por conta de Orochi. O rapper que já trocou versos de provocações com Pelé Milflows, assim como seu nêmesis, ele mostrou que carrega o público carioca no bolso e é um forte candidato a ganhar o país ainda neste verão. Já era de manhã quando um maluco no gargarejo não parava de mostrar os dedinhos do meio para o rapper, que entrou na onda e o chamou pro palco: "Quer aparecer nessa porra, magrinho? Sobe aqui no palco".
O cara estava totalmente embriagado e precisou de ajuda pra subir. Deram um microfone na mão dele e não saiu nada que prestasse. Nem xingar o Orochi o cara conseguia. Mais de uma vez os seguranças tentaram tirá-lo, mas foram impedidos pelo Orochi na maior elegância: "Deixa o menor tirar onda". O cara acabou percebendo que estava feio pra ele e deixou o palco por conta própria. Orochi nem se deu o trabalho de responder a não-rima do cara. "Se fosse vacilão eu nem deixava subir no palco, mas aqui é nóis, aqui é tudo 2". Para encerrar a noite, ele ainda cantou uma boa parte do "Poesia Acústica 6", incluindo o melhor verso de todos, "não era amor, era libertinagem", de Felipe Ret.
Desorganizações à parte, o REP Festival foi um sucesso ao consagrar a atual cena de rap nacional. Um rap que flerta com ritmos primos como o trap, o funk e o pagode. Apesar de não necessariamente ter laços com a cultura questionadora que é o fundamento do hip-hop, não deixa de ser um som que traduz a realidade das periferias brasileiras. É verdade que nesse bolo existe um monte de rapper de condomínio, indo contra os fundamentos do movimento, perpetrando a cultura do estupro e fazendo campanha para fascista, mas o tempo se encarrega de dizer quem é e quem não é.
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