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"Mogli: Entre Dois Mundos" se perde ao tentar equilibrar trama clássica com temas modernos

O urso Balu ao lado do protagonista de "Mogli: Entre Dois Mundos" - Divulgação/Netflix
O urso Balu ao lado do protagonista de "Mogli: Entre Dois Mundos" Imagem: Divulgação/Netflix

Caio Coletti

Colaboração para o UOL

11/12/2018 04h00

Desde sua criação, no final do século 19, a lenda de Mogli, o garoto humano que é criado na selva por lobos após a morte dos pais, foi usada para passar muitas mensagens. No decorrer de diversas versões para a literatura e o cinema, ela já representou tanto ideais colonialistas, que pregam a superioridade de uma espécie ou raça sobre a outra, quanto conceitos de união e cooperação entre indivíduos fundamentalmente diferentes que convivem em sociedade.

Por toda a sua história de mais de 120 anos, no entanto, a única coisa que Mogli consistentemente representou foi uma fábula sobre pertencimento. O personagem é, afinal, alguém que nasceu como uma coisa, e foi criado como outra. A dificuldade igual para se ajustar entre homens e bichos é um aspecto fundamental de seu apelo, e é também o trunfo que "Mogli: Entre Dois Mundos", novo filme inspirado na história, usa para maquiar suas muitas deficiências.

Lançado na Netflix na sexta-feira (7), o filme tenta se aproximar do tom mais sombrio e selvagem da obra original de Rudyard Kipling -- e consegue. Para começar, sua selva de efeitos especiais é composta por cores mais escuras e recônditos mais misteriosos do que a selva das versões de "Mogli" da Disney, tanto os desenhos animados quanto os filmes em live action.

O visual mais "sujo" do filme se traduz para o design dos personagens. O urso Balu ganha um rosto desigual, desfigurado por algum incidente do passado; a pantera Baguera, embora ainda majestosa e elegante, tem olhos menos gentis, e temperamento menos afável; e o tigre Shere Khan, grande adversário de Mogli, é uma fera de olhos azuis penetrantes e rosto largo, que enche a tela.

"Mogli: Entre Dois Mundos" é prodigioso no uso da captura de performance, que transporta as expressões dos atores para os personagens digitais. O Balu do também diretor Andy Serkis é um triunfo de reinvenção do personagem, que foi eternizado como um urso bonachão nos filmes da Disney. Enquanto isso, Christian Bale empresta um coração palpável para Baguera, que sempre foi o coringa emocional das versões cinematográficas de "Mogli".

É verdade que Benedict Cumberbatch derrapa em melodrama ao viver Shere Khan, mas sua interpretação desleixadamente vilanesca é compensada pelo expressivo e genuíno Rohan Chand, jovem ator nova-iorquino de origem indiana que Serkis escalou para viver Mogli. Performances menores de Naomie Harris (Nisha) e Peter Mullan (Akela) também se mostram surpreendentemente eficazes.

O que "Mogli: Entre Dois Mundos" se esquece é que acertar no tom não garante que a história seduza o espectador. A roteirista de primeira viagem Callie Kloves (filha de Steve Kloves, que adaptou a franquia "Harry Potter" para os cinemas) cria aqui uma aventura que se perde na tentativa de equilibrar a história original com as questões contemporâneas que ela levanta.

O tigre Shere Khan em "Mogli: Entre Dois Mundos" - Reprodução - Reprodução
O tigre Shere Khan em "Mogli: Entre Dois Mundos"
Imagem: Reprodução

Kloves claramente não quer que seu filme deixe a mensagem de que a natureza é um objeto para ser dominado pelo homem, e faz malabarismos para mostrar os erros e os acertos do povo da selva e da civilização humana, colocando Mogli em contato com ambos. A intenção é boa, mas "Mogli: Entre Dois Mundos" não encontra jeitos criativos de realizá-la, caindo ao invés disso em uma narrativa que posiciona seu protagonista como um salvador cumprindo o seu destino.

Ao tentar fugir dos espinhos colonialistas da obra original de Kipling, "Mogli: Entre Dois Mundos" propõe suavizá-los, revesti-los com uma camada de açúcar, como se eles não pudessem machucar assim. Neste aspecto, a versão que a Disney lançou em 2016, apesar de mais amigável para crianças, é também mais inteligente e ousada.

O filme lançado pela Netflix, mesmo que tecnicamente magistral, encontra momentos tocantes só quando aposta na status de peixe fora d'água do protagonista. A cena em que Baguera visita Mogli em sua jaula na vila dos humanos, por exemplo, fica com o espectador por mais tempo do que qualquer outra coisa no filme. Ao resolver o desajuste de Mogli tornando-o líder e salvador da selva, "Entre Dois Mundos" trai exatamente aquilo que tem de mais valioso.