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O que Cristiano Ronaldo, fascismo e a crise dos refugiados têm em comum?

Leonardo Rodrigues

Do UOL, em São Paulo

24/10/2018 17h25

Diamantino é burro, ingênuo e, não por acaso, a cara do português Cristiano Ronaldo. Ao desperdiçar um pênalti decisivo na final da Copa do Mundo, ele fica sem chão e vê vida e carreira desabarem. A solução: adotar um refugiado moçambicano. O problema: manipulado pelas irmãs, ele acaba entrando em um programa secreto de engenharia genética do governo de extrema-direita, que tem objetos pra lá de escusos.

O que se vê a seguir é uma sucessão de mal-estares e estranhezas, que parecem refletir o atual estado das coisas. O governo e os parentes do protagonista causam repulsa. A relação do craque com o filho é estranha. O antes atlético começa a se transformar. Fica até difícil acompanhar, mas tudo isso está em "Diamantino", um dos filmes mais instigantes, bizarros e politicamente incômodos que você provavelmente assistirá em 2019 (o filme estreia no Brasil no dia 3 de janeiro).

Estrelado por Carloto Cotta e assinado pelo português Gabriel Abrantes e o americano Daniel Schmidt, o longa foi premiado na Semana da Crítica no Festival de Cannes e entrou em 76 festivais no mundo. Coprodução Portugal-França-Brasil, é também um dos destaques da programação da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e em novembro passará pelo Festival do Rio.

"O filme fala de neofascismo, de Brexit, de Trump, de fronteiras econômicas, raciais, sexuais, de gênero", explica ao UOL Gabriel Abrantes. "Posso dizer que ele traz a visão de que a sociedade com mais ambiguidade é melhor para todo o mundo, em todos os seus formatos de ambiguidade. Se pudesse resumir a mensagem [do filme], seria a de uma sociedade com menos divisórias e fronteiras."

Cena de "Diamantino"; premiado em Cannes, filme conta com produção brasileira - Reprodução - Reprodução
Cena de "Diamantino"; premiado em Cannes, filme conta com produção brasileira
Imagem: Reprodução

Concebida pela dupla de diretores, a história nasceu em 2010 com outra cara e título: "Tristes Monroes", referência à doutrina isolacionista do presidente americano James Monroe. O roteiro original trataria de duas imigrantes que fogem do Haiti para serem adotadas por uma socialite brasileira. O Brasil rico e promissor de então, que ultrapassara o Reino Unido assumindo a sexta economia do mundo, simplesmente deixou de existir, e o roteiro teve de ser reescrito.

"[O filme] Sempre foi uma comédia romântica entre pessoas de classes diferentes, um rico e um pobre, mas com a pessoa rica querendo fazer um ato de caridade, no caso um processo de adoção. É uma sátira a Madonna, Angelina Jolie, Mia Farrow e celebridades do tipo. Esse foi o ponto de partida. Depois, com as mudanças, queríamos escolher um ícone que representasse a alta classe portuguesa, e foi inevitável pensar em uma estrela do futebol, o Cristiano Ronaldo", diz o diretor.

Filmado na bela região de Algarve, sul de Portugal, "Diamantino" faz graça para falar de coisa séria: da crise humanitária à saída do Reino Unido da União Europeia, passando pelo muro que Donald Trump prometeu construir na fronteira dos Estados Unidos com o México. A produção brasileira responde, principalmente, pela edição de som e música, elemento narrativo de destaque.

"Conhecemos os diretores no mercado de filmes de Roterdã [na Holanda]. Eles precisavam de produção brasileira. Cerca de 40% do filme seria rodado no Brasil. Mas, devido a uma falta de equação financeira, o projeto demorou para fechar. Então houve a ideia de adaptar a história de acordo com a nova realidade do mundo. No fim, os temas continuaram os mesmos, com o mesmo espírito crítico", explica o produtor carioca Daniel Van Hoogstraten, da Syndrome Films.

Cena de "Diamantino" - Reprodução - Reprodução
O ator português Carloto Cotta vive "clone" de Cristiano Ronaldo em "Diamantino"
Imagem: Reprodução

Mal-estar da contemporaneidade

A exemplo do filme brasileiro "Durval Discos", de Anna Muylaert, "Diamantino" traz uma estrutura híbrida. No início, aposta na leveza cômica, apresentando um jogador egocêntrico, superficial e assexuado, cuja maior motivação são seus cãezinhos felpudos. Explorando o drama, a inversão de expectativas logo desloca o foco do esporte para a política.

De acordo com os produtores, a sequência de mal-estares é propositiva. A ideia é que o público reflita principalmente sobre a ascensão da extrema-direita e suas eventuais consequências no mundo, como a brecha para o neofascismo. O filme não fala diretamente sobre o Brasil, mas dialoga com questões da nossa conjuntura.

"A história é consequência dos tempos atuais, em que Kanye West e Kim Kardashian vão até a Casa Branca para discutir questões sociais com um ex-astro de reality show. O filme brinca com todo esse absurdo, de pessoas que não são especialistas fazendo política, mas ele também traz um sentimento positivo. O Diamantino é burro, mas no fundo ele é diferente, ele busca o amor e se transforma", conclui Abrantes.