Choro, pó e roteiro rasgado: 10 fatos surreais sobre o filme "Street Fighter"
"Van Damme estava cheio de cocaína em 'Street Fighter'". A frase de Steven de Souza, diretor do filme de 1994, ao jornal "The Guardian" repercutiu no mundo inteiro. Mas o buraco é mais embaixo. Bem mais embaixo. Além do problema com a estrela do filme, o jornal revela que a produção teve uma sequência sucessiva - e surreal - de imbróglios para a realização do filme.
No início dos anos 90, "Street Fighter 2" era um dos jogos mais populares do mundo. Transformar aquele game cheio de personagens icônicos - como Ryu, Chun-Li e Guile - em um filme soaria óbvio nos dias atuais, mas o projeto se tornou mais desafiador, para não dizer problemático, que o imaginado mesmo na cabeça do produtor mais pessimista.
Orçamento foi embora nos cachês
A Capcom, produtora do jogo, não queria um filme baseado em um torneio. A ideia era um roteiro de ação e suspense, algo como um filme de James Bond. Como todo blockbuster que se preze precisa de estrelas, uma quantia substancial do orçamento de "Street Fighter" foi gasto com Van Damme (que bombava em Hollywood após a estreia de "Timecop: O Guardião do Tempo") para fazer o mocinho Guile, e o veterano Raul Julia para personificar o vilão M. Bison.
"Temos duas grandes estrelas, mas pouco dinheiro para o filme", disse De Souza. "Todos os outros atores teriam que ser novatos e não teríamos verba para dar um treinamento avançado de artes marciais", completou.
Até aí, tudo bem.
19 lutadores? Que tal 7?
A Capcom queria espremer 19 personagens do jogo no filme. "Faça as contas. Temos uns cem minutos de filme e não há muito espaço", disse o diretor, que teve que convencê-los a focar apenas em sete ou oito lutadores. "O público mal consegue manter atenção em sete personagens", completou.
A produtora do game não só queria colocar mais lutadores, como também tentou "empurrar" atores no elenco. De Souza já havia escolhido o ator sino-americano Byron Mann para o papel de Ryu. A Capcom, por sua vez, queria o japonês Kenya Sawada. Qual o problema? Ele falava pouquíssimas palavras em inglês. O único jeito de agradar todos foi criar um papel para o japonês, o Capitão Sawada. Ou seja, mais um personagem.
Raul Julia não estava nada bem
Um problema grave para a produção: Raul Julia. O ator, um dos principais nomes do elenco, enfrentava um câncer de estômago e passava por um tratamento agressivo. "Eu recebi a ligação de uma pessoa do figurino: 'Temos um problema. Ele está fantasmagórico. Parece um esqueleto'", disse o diretor, que optou por deixar as cenas de Julia por último no cronograma na tentativa de fazê-lo ganhar peso e melhorar sua saúde.
Raul Julia, que passou o tempo no set acompanhado de sua família, completou as gravações, mas morreu pouco tempo depois, em 24 de outubro de 1994, aos 54 anos, meses antes do lançamento do filme.
"Por que todos estão lutando do mesmo jeito?"
Uma das características marcantes do jogo "Street Fighter" é a opção de escolher diferentes personagens e, consequentemente, tipos de lutas diversos.
Essa informação vital passou batida por um bom tempo no set de filmagem.
"Benny [Urquidez], nosso treinador, não sabia nada sobre lutas de videogame. Era tudo novo para ele. Nós descobrimos no meio do caminho que cada personagem tinha um estilo diferente", disse o ator Byron Mann ao The Guardian.
O ator, que viveu Ryu, falou sobre a dificuldade que enfrentou, principalmente em uma cena onde ele entra em uma batalha mortal contra o Vega, vivido por Jay Tavare. "Um dia eu estava almoçando e um assistente chegou até mim e perguntou: 'Tudo certo para a luta de facas?'. Eu não sabia nada sobre aquilo. Fui até um dublê e pedi ajuda. Ele me ensinou, em cima da hora, o que ele sabia. E é aquilo que foi parar no filme. Não era uma lâmina de plástico, era uma lâmina cortante mesmo. Eu poderia ter me machucado ou machucado os outros", disse.
As mudanças frequentes do cronograma de filmagem agravaram a falta de treinamento dos atores. Com pouco tempo para filmar, o diretor teve que adiantar as gravações de muitos novatos. "Coloquei pessoas na frente da câmera que basicamente não tinha nenhuma experiência em cenas de luta", explicou.
Como (não) resolver um cronograma atrasado
Aparentemente, nada ligado à logística deste projeto dava certo. Durante as filmagens, foram muitos os fatores que atrasaram as gravações, seja pela época chuvosa na Tailândia ou até pela ameaça de um golpe de estado que aterrorizava o país.
"Após dez dias em Bangcoc, nós estávamos seis dias atrasados no cronograma. Era uma tortura. Os produtores nos pressionavam. Então eu fiz um truque: abri o roteiro e arranquei uma página fora. Pronto. Estamos de volta aos trilhos", afirmou De Souza ao jornal inglês.
Cenas cortadas e atores perdidos
Como vimos até agora, o roteiro e a identificação dos atores com os personagens não era nenhuma prioridade do filme. Todos sofriam com as cenas gravadas aleatoriamente e as páginas de roteiros que eram rasgadas no meio do set para resolver os atrasos.
"Eu não conhecia o personagem. Não conhecia o videogame. Eu não sabia o que estava fazendo", disse o indiano Roshan Seth, que viveu Dhalsim no longa.
"Eu deveria ser um cientista louco. Eu pensei: 'Que tipo de ciência eu crio e por que estou louco?'. Há uma cena onde o personagem literalmente puxa seus cabelos até arrancá-los. Eles passaram o dia inteiro colocando uma prótese na minha cabeça para isso. Eles só diziam o que fazer e eu seguia as instruções", concluiu.
Blanka lendo Jack Kerouac
Robert Mammone, um ator australiano, ficou encarregado de viver o soldado Carlos Blanka, capturado por Bison e transformado em uma criatura verde que conhecemos do jogo. Foi só numa festa antes das gravações que ele descobriu que a maior parte das cenas seria feita por um dublê que viveria Blanka já transformado. Mammone passava três horas na maquiagem por dia só para gravar closes de seu rosto. "Eu levava um livro sempre que estava no set. Estava lendo "Pé Na Estrada" de Jack Kerouac".
"Eu dei um soco tão forte que ele chorou"
Mammone afirmou que havia um sério clima de competição entre alguns atores. "Ficávamos nos bares durante a noite e na academia de dia. Queríamos ver quem tinha o maior bíceps".
A sua colocação, no entanto, é refutada por Ming-Na Wen, atriz que fez Chun-Li, e passou por um sério treinamento para se fortalecer durante as gravações. "São todos uns chorões. Eu não vou dar nomes, mas tínhamos uma relação de irmãos. Um dia eu dei um soco tão forte que um deles chorou. E olha que só estávamos brincando", contou.
Filma de novo...Edita de novo...Xinga de novo...
As gravações passaram por muitos perrengues na Tailândia e Austrália. Com todo o material captado, De Souza acreditava que já havia se livrado de boa parte do trabalho.
Coitado.
Ao ver novamente o material, descobriu que diversas cenas de luta estavam pra lá de caídas e sem graça. Todas coreografadas. Lembra que falamos sobre a falta de tempo e verba para o treinamento?
Ele teve que chamar novamente vários atores para ir até um estúdio no Canadá e refazer várias sequências de luta.
Outro desafio era a classificação etária do filme. Com cenas de luta, sangue e violência, o filme ganhou a censura R, ou seja, somente para maiores de idade. Isso impediria totalmente o grande foco dos jogadores de videogame, na maioria adolescentes.
De Souza fez grandes cortes, tirou muita coisa e a classificação continuou como R. Mais uma vez na mesa de edição, ele cortou tudo o que era nocivo, prevendo ganhar o PG-13, o que garantiria jovens a partir de 13 anos nos cinemas. Mas até isso deu errado.
O filme foi classificado como G, o que no Brasil seria considerado livre para todas as idades. "Nenhum adolescente quer ver um filme livre para todas as idades", bradou.
Van Damme foi chamado novamente em estúdio para gravar apenas uma frase com um palavrão. E assim a nova edição foi enviada para classificação. "Aquilo sim nos conseguiu o PG-13".
Agora, a vez de apanhar
Depois de estrear em 23 de dezembro de 1994, agora era a vez "Street Fighter" apanhar. Em poucos momentos da história do cinema tantos críticos concordaram na mesma direção. "Uma mistura exagerada e inexplicável de sequências de artes marciais mal-editadas e com diálogos ininteligíveis", dizia o texto do The New York Times.
É inegável que "Street Fighter" seja um filme de gosto duvidoso, para não dizer ruim. Mas, com um orçamento baixo de US$ 35 milhões e contrariando todas as adversidades que vimos acima, o longa acabou com uma bilheteria pra lá de razoável: US$ 105 milhões.
"Foi bom pra todo mundo"
Um cenário trágico como esse poderia ser uma combinação letal para qualquer carreira no cinema. Mas não foi caso. Ao fim da produção, Van Damme se recuperou de seu vício, Mann apareceu em outros filmes de ação, Kylie Minogue se consolidou como uma estrela do pop e Wen atualmente está no elenco de "Agentes da S.H.I.E.L.D.", da Marvel.
O diretor do longa, Steven De Souza, segue em Hollywood como produtor, roteirista e diretor. "Jean Claude fez apenas dois filmes que lucraram US$ 100 milhões: 'Timecop' e esse. Foi bom para todo mundo. As pessoas dizem que o filme é tão idiota que é engraçado, mas nós já sabíamos que era engraçado. Como você pode ver um filme e achar que ele ficou engraçado por acidente?".
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