Topo

Coletânea reúne clássicos obscuros das HQs de ficção científica pré-1954

Ramon Vitral

Colaboração para o UOL, em São Paulo

12/07/2017 17h15

Em um futuro distante no qual a humanidade já desbravou o limiar do espaço, surgem aliens misteriosos ameaçando o planeta Terra de extinção. Os seres humanos poderão ser vítimas do terror e da fúria dos cientistas do planeta Pyram e seus Monstros de Clorofila. O épico espacial de apenas sete páginas ilustrado pelo quadrinista Jack Katz foi publicado originalmente na quinta edição da revista Lost Worlds em 1952. O quadrinho é uma das muitas pérolas lançadas nos instantes finais da fase conhecida como Era de Ouro (1938-1956) dos comics dos Estados Unidos e um dos 29 clássicos presentes na recém-lançada coletânea "Os Morcegos-Cérebro de Vênus e Outras Histórias".

As 208 páginas do álbum são compostas apenas por histórias de ficção científica. Além da HQ que batiza a edição, há trabalhos como "A Mulher Robô", "O Planeta Morto", "Rex Dexter de Marte na Terra do Ano 2000", "O Homem que Imaginou o Monstro" e "A Vingança dos Vermes". A edição brasileira é única no mundo, tendo sido produzida a partir da restauração de edições originais escaneadas por fãs norte-americanos e composta apenas por títulos em domínio público e lançados até o ano de 1954.

“Era um período de ebulição criativa, de busca selvagem por chocar e surpreender os leitores”, analisa Lauro Larsen, um dos editores e idealizadores do projeto. “Foi quando os autores passaram a ver o real potencial de suas artes e importar suas ideias e seus desejos, pouco importando se era uma aventura ambientada no espaço ou em uma cripta”, analisa o editor. Em meio a nomes esquecidos da história dos quadrinhos, a coletânea também conta com a presença de lendas como Jack Kirby, Alex Toth, Steve Ditko e Wally Wood, que alguns anos após criarem seus trabalhos presentes na coletânea, ajudaram a construir os alicerces da indústria norte-americana de quadrinhos e principalmente as hoje gigantes Marvel e DC Comics.

No entanto, apesar de todo o vanguardismo das artes e das tramas das HQs que constam na edição da Mino, grande parte da produção de títulos dessa leva foi interrompida no mesmo ano escolhido pelos editores para fechar o recorte da obra. Em 1954, por força de políticos conservadores preocupados com a influência dos quadrinhos na juventude dos EUA, foi criada a Association of Comics Magazine Publishers, uma associação administrada por membros de várias editoras de revistas de histórias em quadrinhos e responsável pela criação de um famigerado código de autocensura focado em prezar pelo bom mocismo e a civilidade do conteúdo publicado nas HQs.

Caça às bruxas

O surgimento do Comics Code Authority é visto por muitos como o principal culpado por uma estagnação das artes gráficas norte-americanas nas décadas de 1950 e 1960 e também pela infantilização dos quadrinhos do país, caracterizada principalmente pela fase mais áurea dos gibis de super-heróis. “Antes do código os artistas tinham total liberdade de expressão sobre o que estavam produzindo e isso depois se perdeu”, explica Carlos Junqueira, coeditor de "Os Morcego-Cérebro".

O código de autocensura concebido pelas editoras foi fruto direto da paranoia moralista e anticomunista do período. Ele determinava a proibição de representações gráficas de violência e de qualquer tipo de conteúdo sexual. Lançado no mesmo período, o livro Seduction of the Innocent (Sedução do Inocente, em tradução livre), do psiquiatra Fredric Wertham, colaborou para ampliar ainda mais as tensões em cima dos quadrinistas, argumentando que o conteúdo produzido por eles era maléfico aos jovens leitores de HQs.

“Era uma caça às bruxas promovida por pessoas com muito pouco a fazer”, sintetiza Larsen. No entanto, o impacto foi definitivo. “O código mutilou a indústria no seu momento de maior explosão criativa, é o período de fundação do que se tornaria o quadrinho moderno. Foram afetados autores que praticamente pavimentaram todo o quadrinho mainstream norte-americano”, diz o editor. Steve Ditko, por exemplo, alguns anos depois criaria o "Homem-Aranha" junto com Stan Lee. O mesmo acontece com Jack Kirby, conhecido pelos fãs de HQs como o “O Rei” e também parceiro de Lee na concepção dos "Vingadores" e do "Quarteto Fantástico".

Após fecharem o recorte histórico do álbum, Larsen e Junqueira passaram a reunir e restaurar versões escaneadas e disponíveis na internet das raríssimas edições originais dos quadrinhos que pretendiam publicar. Entre a concepção do livro e sua chegada às livrarias, foram dois anos de trabalho. “É um material muito difícil de se encontrar por conta da grande quantidade de revistas que foram destruídas, literalmente queimadas, por serem apontadas como causa da ‘delinquência’ da juventude daquela época”, relata Junqueira.

“Cada página foi tratada para remover as cores e restaurar as imperfeições. Tudo dependia da qualidade do scan; a maioria era ótima para leitura no computador ou em tablets, mas quando impressa, ficaria serrilhada”, explica o coeditor. “Sem este material online disponível, seria impossível pensar em um projeto destes, devido ao alto custo para se adquirir as revistas originais e sem falar no tempo necessário para encontrá-las”, conta.

Segundo os editores, dependendo da repercussão do livro, a ideia é que ele seja o primeiro de uma coleção, batizada de Incendiária. A expectativa é que o sucesso dessa primeira empreitada permita a produção de outras coletâneas focadas no mesmo período, mas em outros gêneros. Ainda no aguardo do retorno das livrarias, eles já começaram a restaurar outros materiais. “Este período ainda teve uma quantidade enorme de histórias de terror, western, romance e outros gêneros. Já restaurei mais de 2.000 páginas destes temas. Quem sabe o que pode vir por aí?”, instiga Junqueira.