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Análise: Sob Doria, Virada Cultural renegou suas próprias conquistas

Jotabê Medeiros

Colaboração para o UOL

22/05/2017 04h00

“Quero agradecer o convite. Muito embora seja nesse lugarzinho triste, nesse horariozinho triste...”, disse o cantor cearense Raimundo Fagner, que chamou de “produção Tabajara” o aparato sonoro que colocaram à sua disposição no Parque do Carmo, no início da noite de sábado.

Fagner se apresentava no Parque do Carmo como convidado da banda paulista de forró Bicho de Pé, mas foi um convidado de cara amarrada, reclamando o tempo todo da produção enquanto repassava, sem um sorriso sequer, sucessos como Borbulhas de Amor, Coração Alado, Canteiros e Deslizes. Chamar o local de “lugarzinho triste” foi uma grosseria do cantor para com a periferia de São Paulo, porque o Parque do Carmo, com seus 1,5 milhão de m², é um parque público admirável, e estava lindamente decorado como uma megaquermesse (sem cerveja, proibida), policiamento adequado, com bons serviços médicos de emergência e tudo o mais. As poças de água, que logo se tornaram lama, eram um empecilho, mas não um impedimento - o público, ainda que pequeno, trouxe suas crianças, os namorados vieram, os dançarinos.

O problema, como em quase toda a Virada de 2017, era um só: o público definitivamente não se engajou na jornada. As pequenas áreas "VIP" do banco patrocinador, lounges estandartizados, estavam às moscas. A chuva, é claro, tem um grande papel nesse fiasco, mas não foi apenas São Pedro o culpado. Havia problemas de comunicação, não houve distribuição de folhetos informativos e os palcos não traziam a indicação de quem tocava naquele momento.

A organização da Virada cometeu também um erro estratégico: subestimou algumas pequenas tradições já sedimentadas, como o palco popular do Largo do Arouche, que viveu momentos catárticos em edições anteriores com funkeiras como Ludmilla e ícones como Kaoma, Sarajane e Sidney Magal. Inventou-se ali um Palco Jazz, que foi duramente castigado pela indiferença. No momento do show de KL Jay e a big band do Projeto Coisa Fina, havia 34 pessoas na plateia, e já era quase meio-dia deste domingo.

Público se protege da chuva para assistir ao show do É o Tchan na Virada Cultural - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Público se protege da chuva para assistir ao show do É o Tchan na Virada Cultural
Imagem: Mariana Pekin/UOL
Também, em comparação com os anos anteriores, pecou por não escalar "âncoras" estrangeiras entre os artistas nacionais, em shows e encontros que renderam grandes momentos no passado, como as apresentações do soulman Charles Bradley e de quase todos os escudeiros de Frank Zappa. Sem chamariz desse porte, os shows ficaram restritos a uma agenda concentrada de artistas que já se apresentam regularmente no cenário paulistano.

O palco funk e soul da Praça da República chegou a abrigar uma batalha de moradores de rua com os brindes infláveis do patrocinador, enquanto um animado Simoninha tentava encorajar a meia dúzia de aficionados - e nem estava chovendo ainda. Quem se mexia, ainda conseguia bom resultado. Nas imediações da Praça das Artes, o grupo Unidos do Swing fazia sua performance em movimento, arregimentando quem podia para participar do conceito sulista, tocando coisas como Sweet Georgia Brown, sucesso de Louis Armstrong.

No sábado à noite, no Cabaré Queer, na Avenida Ipiranga, ao lado do Copan, a diva Shanawaara dava uma aula de política ao seu público. “Pelo amor de Deus, saiam do Facebook!”, ela disse, explicando que o momento do País coloca a população em um patamar “ainda abaixo do Titanic”. Logo a seguir, o cantor Edy Star e a banda pernambucana Dunas do Barato recuperavam em seu som híbrido uma época de doce transgressão e romantismo político em meio à rebelião trans das imediações do Copan.

Assucena Assucena, da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, protesta contra o governo Temer e pede "Diretas Já" na Virada Cultural - Walmor Carvalho/Fotorua/Estadão Conteúdo - Walmor Carvalho/Fotorua/Estadão Conteúdo
Assucena Assucena, da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, protesta contra o governo Temer e pede "Diretas Já" na Virada Cultural
Imagem: Walmor Carvalho/Fotorua/Estadão Conteúdo
A política estava em tudo, do grito de Daniela Mercury pedindo “renúncia já” no Sambódromo aos berros de “Fora Temer” em todos os lugares, mas parecia que havia um desânimo adicional, como se o ativismo agora cedesse lugar a um vácuo. Nesse tom, quem achou um caminho para o discurso foi o maestro Jamil Maluf, que regeu um concerto uterinamente nacional no Theatro Municipal de São Paulo. “Vamos tocar a Série Brasileira de Alberto Nepomuceno, que era um brasileiro da gema, daquele tipo que não rouba”, disse Maluf.

À frente da Orquestra Experimental de Repertório, com um programa que incluía a moda de viola e a participação do violeiro Ivan Vilela, Maluf exortou a plateia ao autorreconhecimento, ao orgulho nacional, algo esmaecido nesses dias de noticiário sombrio. Tocou Saudade da Minha Terra, Menino da Porteira e outros clássicos do cancioneiro caipira, além de Armorial, de Ivan Vilela, uma composição que foi feita em consonância com os princípios do nacionalismo de Ariano Suassuna e do Movimento Armorial.

Ao esvaziar o centro de suas estrelas principais, a Virada Cultural de 2017 reduziu significativamente os indicadores de violência e excessos de anos anteriores, mas também desidratou a diversão. Havia, naquela migração eufórica do público em direção a megashows anteriores de encerramento, como os de Caetano Veloso e Gilberto Gil, uma sensação de conquista, de triunfo da vontade popular sobre a vontade do governo, do Estado. Sem ter para onde correr, sem saber direito onde estava quem, o paulistano preferiu ficar em casa.