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Em meio à miséria, mulheres do Vale do Jequitinhonha se refugiam na arte

Luna D'Alama

Colaboração para o UOL, em São Paulo

13/11/2015 19h15

Foi vendo a mãe fazer presépios de Natal que a artista mineira Lira Marques, 70, começou a se interessar por argila e cerâmica, aos 5 anos de idade. As peças de barro confeccionadas por ela no Vale do Jequitinhonha --região nordeste de Minas Gerais, conhecida nos anos 1970 como “Vale da Miséria”-- saíram de lá para ganhar o mundo, em exposições na Áustria e em Boston (EUA) e pelas mãos de compradores da Alemanha, Bélgica, Holanda e Itália, entre outros.

A partir desta sexta-feira (13), a vida e a obra de Lira e dezenas de outros artesãos da região mineira chegam a São Paulo com a exposição fotográfica “Do Pó da Terra”, que é assinada pelo paulistano Maurício Nahas e fica em cartaz no Museu Afro Brasil, no parque Ibirapuera, até 3 de janeiro.

A mostra, que reúne 50 imagens em preto e branco, tem como foco as pessoas –a maioria, mulheres– por trás de cada trabalho, além das paisagens regionais. São artistas que vivem em meio à seca, à violência, ao desemprego e a baixíssimos níveis de IDH, mas mantêm viva uma tradição oral passada de geração para geração. 

“É gratificante ter o nosso trabalho divulgado em São Paulo, assim como a vida e a trajetória do artesão. Tenho uma produção bastante variada, mas gosto muito de fazer máscaras de negros e índios, pois sou descendente dos dois, e o rosto sofrido deles retrata bem a nossa realidade, os problemas sociais”, explica Lira, que mora com a família na cidade de Araçuaí e veio à capital paulista para o lançamento da exposição e de um livro homônimo. Segundo ela, “coisas bonitinhas” são mais fáceis de vender, mas, apesar disso, o interesse do público --principalmente de turistas estrangeiros que visitam o Vale do Jequitinhonha – tem sido grande para conhecer suas obras.

“Viver de arte não é tão simples, mas faço um trabalho sério, dou oficinas na UFMG e também mexo com desenhos e pinturas. Já ensinei três sobrinhos [duas mulheres e um homem], pena que eles não estão querendo dar continuidade. Fico um pouco chateada com isso, eles têm peças bonitas, as pessoas veem e incentivam, mas não é tão fácil assim vender”, conta ela, que acredita que sua região tem mudado aos poucos, ao longo dos anos. “Hoje muita gente vai lá para conhecer a nossa cultura, os artesãos, os grupos de teatro, os corais, e fazer compras”, destaca.

As “paneleiras”, como são conhecidas essas mulheres, começaram produzindo objetos utilitários (como panelas, potes e moringas), sob forte influência indígena, passaram a fazer brinquedos e figuras para presépios --caso da mãe de Lira-- e hoje se concentram em peças decorativas, como figuras humanas, esculturas de animais e cenas do dia a dia. Assim, os artistas têm conquistado independência econômica e valorização profissional.

Bendito entre as mulheres

Apesar de reunir predominantemente artistas do sexo feminino, também há homens que trabalham a cerâmica no vale mineiro. O artesão e produtor cultural Amaury Ferreira, 43, é um desses representantes: assim como Lira, ele está retratado na exposição do Museu Afro Brasil e veio a São Paulo para a inauguração.

Morador da cidade de Minas Novas, Amaury iniciou a carreira há 22 anos, modelando pequenos objetos com Durepoxi. “Depois que conheci o barro, nunca mais parei. No começo, era estranho, por ser um ofício quase exclusivo das mulheres, mas era muito bonito e trazia resultados. Criei figuras e personagens como a ‘magrela’ e um casal se beijando --com este, fiquei muito conhecido, vendi várias peças na Vila Madalena, em São Paulo, e para turistas e colecionadores da França e Itália”, conta.

Ele também é professor, com foco em comunidades quilombolas, e já ensinou sua arte para a mulher –que agora ministra oficinas– e para a filha mais nova, de 10 anos, que pretende seguir os passos do pai. “Ajudei, ainda, a capacitar uma localidade chamada Cachoeira do Fanado. Hoje, todo mundo lá vive do artesanato. E consegui viver de arte, adquiri bens e comprei até um pedaço do lugar de onde, no início, eu tirava o barro para trabalhar”, afirma.

Livro e filme

Além da exposição, o fotógrafo Maurício Nahas, 51, está lançando um livro sobre os artesãos do Vale do Jequitinhonha, com cerca de 80 imagens. Segundo Nahas, o nome “Do Pó da Terra”, que batiza todo o projeto, tem a ver com uma frase do Gênesis (“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra...”) e faz essa analogia entre o barro e a essência humana.

O fotógrafo esteve no vale mineiro em 2013 para gravar um documentário sobre o tema, que será lançado no primeiro semestre de 2016, e voltou em janeiro deste ano para fazer as fotos presentes na exposição.

“O que mais me impressionou foi ver um talento enorme de pessoas que, muitas vezes, são semianalfabetas, é quase surreal. Você também percebe a força da mulher, numa sociedade que virou matriarcal. Estamos falando de uma atividade com 80% de predominância feminina, e muitas delas trabalham enquanto os maridos cuidam da casa e dos filhos”, diz. O projeto dele se concentra em mais de dez artesãs, como Lira, e em alguns homens, como Amaury.

No documentário, Nahas assina seu primeiro trabalho na direção. “Rodamos mais de 3 mil km em 25 dias, passamos por sete cidades. O Vale é um personagem importante, acho que já melhorou muito, não cabe mais ser chamado de ‘Vale da Miséria’. Apesar disso, ainda é um lugar com escassez de trabalho e oportunidades, onde vive um povo muito castigado”, pondera.

Exposição "Do Pó da Terra"
Quando: de 13/11 a 3/1; ter. a dom., das 10h às 17h
Onde: Museu Afro Brasil (Parque Ibirapuera, portão 10, acesso pelo portão 3; av. Pedro Álvares Cabral, s/n)
Quanto: R$ 6 (inteira) e R$ 3 (meia). Entrada gratuita aos sábados
Informações: (11) 3320-8900 e www.museuafrobrasil.org.br