Após 30 anos escrevendo sobre HQs, McCloud lança elogiada "The Sculptor"
“São 42 dias de entrevistas e palestras, estou com medo de perder minha voz”, diz o quadrinista americano Scott McCloud ao UOL, puxando para si uma garrafa de um litro de água mineral. A visita à Alemanha para o Festival Internacional de Literatura de Berlim é apenas a segunda parada após o lançamento nos EUA da HQ “The Sculptor” (em tradução literal ‘O Escultor’), no início de fevereiro.
Com entusiasmo de iniciante, o autor lança a sua primeira graphic novel depois de três décadas teorizando HQs em livros como “Desvendando os Quadrinhos”, o que lhe rendeu a alcunha de “Marshall McLuhan” da nona arte. Bem avaliada pelos jornais “The Guardian” e “The New York Times”, a graphic novel teve os direitos comprados pelos estúdios Sony para ganhar uma adaptação cinematográfica no próximo ano.
Qualquer semelhança entre “The Sculptor” e a vida pessoal de Scott não é coincidência. A história surgiu quando ele tinha 24 anos e se aventurava na arte por meio da série futurista “Zot!”, publicada pela Eclipse Comics entre 1984 e 1990. O quadrinista relembra a época como “tempos obscuros”. “Este personagem é um pouco como eu era quando tinha aquela idade. Mais do que frustrado, eu estava isolado. A arte era tudo para mim e, quando digo arte, quero dizer quadrinhos. Só trabalhava e não fazia nada além de trabalhar. Tinha poucos amigos, encontrava poucas pessoas. Provavelmente teria me tornado esses velhos que enviam cartas raivosas para o governo da cidade”, diz entre risos.
Colaboração com "versão jovem"
O que salvou Scott --e o que salva David Smith, o protagonista da história-- foi a presença de uma mulher. Meg, a inconsequente jovem atriz que aparece como um divisor de águas na vida do escultor da HQ, é inspirada em Ivy Ratafia, mulher do autor e mãe de suas duas filhas, Sky e Winter. “Estive secretamente apaixonado por ela por sete anos, mas ela era comprometida, então guardei para mim”, comenta alto e orgulhoso para que Ivy, que colaborou com edições da “Zot!” em 89, possa ouvir no canto da sala.
“Ivy ajudou a manter o personagem real na minha imaginação. De certa forma, ela manteve a ideia do livro viva”, explica. “Em alguns momentos, eu tentei fazer com que Meg se parecesse menos com ela. Não podia escrever uma carta secreta para minha mulher, pois meus leitores esperam uma boa história. Mas me peguei usando as referências de Ivy novamente no fim do processo.”
No livro, Meg surge como um anjo na vida do personagem e enfrenta conflitos comuns a jovens artistas que buscam oportunidades em Nova York. “Existem muitas conversas no livro que tivemos na vida real quando ela sofreu depressão”, comenta. “Você permite o máximo de vida real possível para contar uma boa história.
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Todos acham que, se você está escrevendo sobre um artista, deve ser sobre um grande artista. Mas, na vida real, a verdade é que muitos artistas se esforçam e trabalham duro, e 99,9% sabem que vão ser esquecidos antes mesmo de sua morte
A HQ também é um reflexo das crises criativas e da autocrítica de McCloud durante o longo período sem se dedicar à ficção. “Esta é uma ideia muito antiga. A pergunta não é ‘quando’ surgiu esta ideia, mas ‘por que’ esperei tanto tempo para fazê-la. Há uma parte de mim que quer fazer dos quadrinhos algo além da fantasia, algo além dos superpoderes. Então, na época, tinha medo de a história ser muito infantil, não queria pensar sobre esse personagem. Mas por muitos anos a história não saiu da minha cabeça, então precisei lidar com isso.”
O ponto de intersecção surgiu quando o autor decidiu “colaborar com sua versão mais jovem”, há cinco anos. “Quando decidi realmente escrevê-la, tinha pelo menos duas décadas de vida a mais. Então tenho essa ideia jovem, fresca e raivosa, alta e espontânea, megalomaníaca como a juventude. Algo que qualquer ‘20 e poucos’ quer escrever. Mas você fica mais velho e quer escrever sobre pequenas coisas, o que tomou de café da manhã, quem lavou os pratos, quem vai pegar as crianças na escola. Mais velhos, todas as decisões que tomamos sobre as pessoas que amamos são relacionadas a coisas pequenas.”
A vida e a morte aos olhos de um ateu
No livro, Smith recebe a oferta de ser eternizado pela sua arte com a condição de ter 200 dias de vida restantes. “Um ato irresponsável, mas que eu aceitaria naquela época”, confessa. Para Scott, o principal conflito do personagem surge quando ele percebe “o quanto está perto dos seus limites”. Citando o filósofo Henry David Thoreau, ele acredita que, assim como o escultor, “a maioria dos homens vive vidas de silencioso desespero”.
Com o dobro da idade, sua filosofia aos 50 é de que “todas essas pequenas camadas são relacionadas aos aspectos mais fundamentais do negócio de estar vivo”. Usando a voz do jovem escultor, Scott, que é ateu, compartilha no livro sua análise sobre a vida e a morte por meio de desenhos, ou da ausência deles, como quando escolhe páginas brancas para mostrar sua visão ‘do outro lado’. “Algumas pessoas podem ter muito medo de ficarem pobres, outras de perder as pessoas com quem se importam. Quanto mais eu percebo isso ao meu redor, mais percebo o quanto todos nós estamos próximos do abismo”, comenta.”
A escolha do quadrinista por retratar um artista veio do seu antigo professor de artes plásticas. Mas, assim como seus livros sobre como fazer quadrinhos, a ideia é tornar a história acessível para o criador por trás da leitura. “Todos acham que, se você está escrevendo sobre um artista, deve ser sobre um grande artista. Mas, na vida real, a verdade é que muitos artistas se esforçam e trabalham duro, e 99,9% sabem que vão ser esquecidos antes mesmo de sua morte. Em algum nível, todos nós tememos ser esquecidos. E, de certa forma, é uma história sobre aceitar ser humano e mortal.”
Apesar do realismo da história às vezes soar pessimista, a proposta de McCloud com seus livros sempre foi de democratizar o “storytelling”. O que ele também faz em “The Sculptor” retratando um personagem que teve um pouco de sucesso no início da carreira, mas no geral não tem um dom e falha sucessivamente nas tentativas de criar algo com significado.
Ele mesmo assume não ter sido bom aluno de artes plásticas: “Sou muito ruim em fazer coisas em 3D. É um dos motivos de ter escolhido fazer desenhos, seria um péssimo escultor”. Nessas horas, a tecnologia dá uma mãozinha, as 500 páginas do livro foram desenhadas no Photoshop. “É uma limitação que tenho como artista. Moebius poderia desenhar a Capela Sistina de olhos fechados, Craig Thompson tinha um dom natural para o desenho que eu preciso compensar. Em todo o mundo há artistas naturais. E eu nunca fui um deles”, sorri. “Mas no digital eu posso. Se fizer a cabeça menor, consigo aumentá-la, posso lembrar que existe mais um dedo na mão das pessoas. É perfeito para mim.”
Criando análises sobre o formato durante toda a conversa, Scott prefere que seus leitores deixem de lado o conhecimento adquirido em seus livros e que a história não seja vista somente como biográfica. “Não queria pensar sobre as técnicas e não quero que as pessoas digam: ‘Olha como ele muda a cor do painel, olha esta transição’. Eu quero que as pessoas leiam, passem por dois ou três painéis, pisquem, e então chegaram à última página em duas ou três horas. Com sorte, vão reler o livro.”
Nova York do ponto de vista do protagonista
Para desenhar “The Sculptor”, Scott usou como base um de seus hobbies além dos quadrinhos: a fotografia. Em uma das cenas, o espectador descobre a Times Square da perspectiva do protagonista, o que não inclui os telões e lojas da famosa avenida nova-iorquina, mas vozes dos seus pedestres e turistas. “Nova York é a quarta personagem no livro. Não queria mostrar a cidade que todos conhecem nos cartões-postais e na televisão. Queria mostrar a história toda do ponto de vista do personagem. Nova York é uma paisagem de edifícios, mas também uma paisagem de pessoas, e essa foi a parte mais divertida de fazer. Quero mostrar que todo o mundo por trás deste desenho tem a sua própria vida.”
Para criar os personagens principais, o autor usou os modelos Jennifer Newman e Matthew Mercer. Harry, tio do escultor na ficção, foi modelado por Lester Ratafia, pai de Ivy, que morreu recentemente e, famoso na família por seu bom humor, pediu que Scott escolhesse Tom Cruise para interpretá-lo no longa inspirado na HQ.
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Sou muito ruim em fazer coisas em 3D. É um dos motivos de ter escolhido fazer desenhos, seria um péssimo escultor
As informações sobre os bastidores do mundo da arte vieram de um casal de amigos de Scott que trabalham com museus e galerias nova-iorquinas, o que enriqueceu a história com diálogos em que os personagens discutem o mercado da arte atual, exposições conquistadas com ‘testes do sofá’, nepotismo e até uma breve conversa sobre os balões de poodles criados pelo artista contemporâneo Jeff Koons.
O azul do livro, que remete ao cabelo de Ivy e aos olhos de Scott, foi a cor escolhida durante uma visita do quadrinista a uma loja de construção. “Gosto de histórias em quadrinhos coloridas, mas não sou capaz de fazê-las, meu senso de cor não é bom. Fiz em preto e branco. Poderia ter chamado um colorista, mas eu preciso controlar tudo. Queria que a história fosse clara como uma janela por onde você pode ver detalhes de outro mundo.”
“Uma forma de arte como qualquer outra”
Vinte e dois anos após a primeira edição de “Desvendando os Quadrinhos”, McCloud acredita que as HQs tiveram um progresso considerável, o que inclui a presença feminina em mais publicações e a revolução no formato facilitado pela web. “Hoje existe mais equilíbrio, mais pessoas que fazem história em quadrinhos, mais mulheres fazendo quadrinhos, existem as infinitas possibilidades de quadrinhos digitais.”
Ele lembra que a palavra “quadrinhos” já não significa o mesmo que em sua infância, quando ele lia heróis da DC Comics e da Marvel. “Na América, por muito tempo, quadrinhos eram sobre super-heróis se socando, e não há nada de ruim nisso. Mas existe algo além, chamado graphic novel. E o real desafio para aqueles que querem fazer graphic novel é alcançar a mesma riqueza, a mesma densidade, a mesma reflexão que você encontra em um romance, em uma história que desafia a sua forma de ver o mundo.”
Sobre o fenômeno do formato 24 horas, em que o quadrinista incentiva autores a desenvolverem histórias rápidas, ele diz: “Só fiz para mostrar a um amigo que era possível fazer uma HQ em um dia”. O formato virou uma febre nos Estados Unidos e hoje reúne eventos com formatos semelhantes no Brasil e no mundo todo, inclusive em diferentes áreas, como filmes e games. “Naquela época parecia algo tão bobo. Nós fizemos, e então amigos como Neil Gaiman [que assina a capa do livro] e Kevin Smith [criador das ‘Tartarugas Ninja’] fizeram, publicaram em revistas, e a ideia virou um meme. Fizemos um vírus, espero que bom”, comemora brincando.
Quanto ao processo de descoberta da sua própria voz na ficção, Scott diz que seu maior progresso nos últimos 20 anos foi mostrar que “quadrinho é uma arte como qualquer outra. Com os mesmos potenciais de sucesso e fracasso. E, mesmo com todo esse potencial, ainda existe a página em branco. Na maior parte da minha vida, tenho tentado ensinar que quadrinhos são muito mais do que superpoderes.”
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