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Com cena independente e interesse de editoras, HQs se fortalecem no Brasil

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

31/01/2015 15h42

 “Os quadrinhos estão em alta. Voltou a ser cult, ninguém mais tem vergonha de ser nerd. Hoje temos absolutamente todos os gêneros no mercado, desde Robert Crumb até mangá erótico. Desde super-herói de linha até o nacional fofinho. Mesmo com a crise do mercado editorial brasileiro, as vendas das HQs subiram. Além disso, os artistas independentes estão sabendo aproveitar esse momento.” Quem faz a análise é Sidney Gusman, um dos mais respeitados especialistas em quadrinhos do Brasil, que atua na área desde 1990 e, atualmente, edita o site Universo HQ e é o responsável pelo planejamento editorial da Mauricio de Sousa Produções.

A produção nacional reforça os argumentos de Gusman. Outrora completamente ofuscada pelo que vinha do exterior, ela começa a ocupar um espaço relevante, seja nas livrarias --por meio de editoras consagradas que investem cada vez mais no gênero ou de novos selos que surgem para lidar exclusivamente com HQs--, seja na cena independente, estimulada pala internet e pelos eventos do nicho que acontecem pelo país.

Paulo Ramos

  • Vive-se um momento ímpar hoje no país. Há uma diversidade de publicações, de gêneros e formatos nunca antes vista. O volume de tiras e de narrativas mais longas feitas por autores brasileiros também é inédito

    Paulo Ramos, do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP.

“Há quatro anos, uma editora dava 7% das vendas de um quadrinho já pronto para o seu autor. Hoje, editores precisam ir atrás de muitos caras, pagar para que produzam e dar mais  porcentagem de venda. É pouco ainda, mas as coisas vão acontecendo. Há uma predisposição maior das pessoas em consumir quadrinho nacional”, continua Gusman, cuja opinião encontra bastante eco entre seus pares.

“Vive-se um momento ímpar hoje no país. Há uma diversidade de publicações, de gêneros e formatos nunca antes vista. O volume de tiras e de narrativas mais longas feitas por autores brasileiros também é inédito. Não se compara às vendas em bancas de 50 anos atrás, mas vive-se um período de ebulição inédito”, diz Paulo Ramos, membro do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes (ECA), da USP.

Mesmo ponderando que o ideal seria analisar o momento atual daqui a alguns anos, tendo números consolidados em mãos, e indicando que talvez o ápice do quadrinho nacional tenha sido por volta de 2010, Érico Assis, jornalista e especialista em quadrinhos, também faz sua análise. “Nos últimos dez anos, vimos a seção de quadrinhos nas livrarias crescer ou brotar com espaço considerável, passamos de quase zero a dezenas de ‘graphic novels’ nacionais por ano. Os quadrinistas brasileiros passaram a ser publicados com criações próprias no exterior e ganham prêmios por lá”.

As razões
Mas quais são as razões para esse momento? Ramos indica que, atualmente, os artistas possuem cinco caminhos para que possam publicar suas obras: por meio de editoras, leis de fomento à produção, financiamentos coletivos, com verba própria ou pela internet. Esses caminhos ainda podem se cruzar, possibilitando que frentes diversas sejam unidas a fim de viabilizar um projeto, o que pode se transformar em um atalho para o quadrinista.

Arnaud Vin, editor da Nemo, selo do Grupo Autêntica dedicado às HQs, aponta alguns fatores para que o país viva essa fase que ele define como “de bela exuberância, prolífica, forte e grande”. O primeiro deles seria a qualidade das “graphic novels”, que despertam a atenção de um público cada vez maior. O segundo é o aumento no número de eventos relacionados ao tema, como o FIQ (Festa Internacional de Quadrinhos), em Belo Horizonte. O terceiro, o dinamismo e a qualidade da produção independente no país. E o quarto, o espaço que autores brasileiros galgam no exterior aliado ao respeito que conquistam internamente –lembra, inclusive, que dois quadrinistas, Fábio Moon e Marcelo Quintanilha, fazem parte da delegação que representará o país no Salão do Livro de Paris deste ano, onde o Brasil será homenageado.

bibiana

  • Queremos nos firmar no mercado, conquistar leitores que já consomem quadrinhos e também apresentar essa linguagem para a parte do nosso público habitual que ainda não estiver acostumada a ela

    Bibiana Leme, do selo Barricada

A Nemo existe desde 2011, quando surgiu com a proposta de publicar nomes consagrados das HQs e autores brasileiros contemporâneos. Com tiragens médias que ficam entre 2.000 e 3.000 exemplares (mas com pico de impressão de 20 mil volumes de um único livro), lançando entre 25 e 30 novidades por ano e tendo cerca de 85 livros em seu atual catálogo, o selo acompanha o crescimento de todo o grupo ao qual pertence, tendo suas vendas incrementadas em torno de 30% em 2014.

Para este ano, está dentre as novidades da editora uma série com cinco “graphic novels” que abordarão assuntos polêmicos. “São trabalhos assumidamente políticos. Trataremos de temas como o radicalismo islâmico por meio da vida de uma mulher, por exemplo, que já sai em março, ou o regime totalitário do Irã. Desejamos participar de um debate social, mas de maneira assumida”, diz Vin, que ainda vê muito espaço para que o crescimento do setor continue, contornando problemas inerentes a uma boa parte da cadeia editorial nacional, como a distribuição em um país de dimensões continentais e a falta de espaço em livrarias, sejam elas físicas ou virtuais. Muitas sequer possuem uma seção para HQs.

Outras apostas
Outro selo exclusivamente destinado às HQs, que pertence a uma editora já estabelecida e também assume a porção política e crítica de seus trabalhos, é a Barricada, que surgiu em meados de 2014 como um braço da Boitempo. “O nome do selo, inclusive, evoca a vontade de abrir uma frente de resistência e luta, nesse caso, em prol dos temas libertários, necessários ao debate público. Mas quadrinhos são arte, então não estamos limitando demais a nossa temática: para nós, basta que eles sejam capazes de acender o questionamento e instigar a imaginação”, diz Bibiana Leme, a editora responsável pelo Barricada.

Em 2014, o selo colocou no mercado três títulos, sendo dois estrangeiros e um nacional (“Clawn”, de Felipe Bragança). Agora, avalia o retorno para definir os próximos investimentos. “A área dos quadrinhos é mais cara do que a de livros-texto com que costumamos trabalhar, pois envolve novos formatos e, em geral, impressão colorida”, explica Bibiana. “Queremos nos firmar no mercado, conquistar leitores que já consomem quadrinhos e também apresentar essa linguagem para a parte do nosso público habitual que ainda não estiver acostumada a ela”, continua. Em todo caso, ao menos um título já está confirmado para este ano: o segundo volume de “Cânone Gráfico”, organizado por Russ Kick. Mas a editora garante que outros virão, inclusive nacionais, que ainda estão sendo selecionados após indicações do conselho editorial da casa.

Emilio Baraçal

  • Vejo o mercado como horizontal, ou seja, algo que está expandindo na quantidade de lançamentos e quadrinistas produzindo algo. Isso é bom

    Emílio Baraçal, roteirista da editora Supernova

E muitas outras editoras vêm apostando na área. Desde a novíssima Mino, que recentemente fez sua estreia no mercado com “L'Amour”, de Luciano Salles, passando por selos de casas consagradas, como Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras, até aquelas que investem parcialmente no segmento, como a Veneta, a 8Inverso e a Draco.

Outra iniciativa recente, com uma proposta bastante arraigada ao virtual, é a editora Supernova Produções. Seu trabalho de estreia, “Anarquia #01”, foi disponibilizado gratuitamente no Google Play e é a primeira de uma leva de HQs que a editora pretende publicar em formato de revista digital com distribuição gratuita, em versões para diversos idiomas, como inglês, espanhol e francês, além do português.

         Apostando em histórias seriadas e heróis dos mais diversos gêneros, as pretensões de Emílio Baraçal, roteirista da casa, são altas. “Quero que a Supernova seja uma das maiores empresas de entretenimento do mundo. Quero estabelecer um universo funcional de personagens de ação, aventura e fantasia que quebre o paradigma de que isso não pode ser feito no Brasil. Quero fincar nossos personagens na cultura pop. Quero que eles sejam reconhecidos por um grande número de pessoas. Que saibam sobre eles tanto quanto sabem sobre Superman, Batman, Homem-Aranha, etc. Depois de realizar isso, quero expandir nossos personagens e nosso universo para várias plataformas”, diz, ressaltando que também deseja tratar “autores e artistas com o devido respeito” e, em termos criativos, contar as melhores histórias possíveis.

Indo no sentido oposto aos seus pares, Baraçal não encara o momento das HQs no Brasil de forma tão positiva. “Vejo o mercado como horizontal, ou seja, algo que está expandindo na quantidade de lançamentos e quadrinistas produzindo algo. Isso é bom. O único problema é não termos um crescimento vertical. Tudo que os quadrinistas fazem é vender para as mesmas pessoas nos mesmos lugares, seja uma comic shop, seja um evento. É o mesmo público sempre. E temos as mesmas práticas editoriais de 1995”, opina

Sidney Gusmán

  • Criativamente falando, também nunca vi um momento melhor de autores nacionais. Tem muita coisa para melhorar, a maior parte dos bons quadrinhos você só acha em eventos, porque os independentes não têm distribuição, e muito leitor não consegue acompanhar coisas incríveis que estão saindo de maneira independente. É muita gente fazendo quadrinhos de ótima qualidade, que precisariam de mais espaço

    Sidney Gusmán, editor do Universo HQ

O roteirista acredita que as grandes cifras podem vir de boas histórias continuadas, de periodicidade determinada, publicadas com tempo suficiente para que os personagens se popularizem, como nas séries, podendo se expandir para além das HQs. ”E histórias seriadas são tudo que os autores brasileiros não fazem. São poucos os que se arriscam a fazer algo contínuo. Há toneladas de ótimas HQs brasileiras, e o que todas elas têm em comum? A história é publicada e… fica nisso. O único fim dela é vender seus exemplares e preencher a realização artística dos envolvidos. Só. Ninguém explora a marca. Ninguém explora suas próprias criações. HQs são mais do que só boas histórias. Elas também são produtos comerciais e precisam ser monetizadas. Ficar na venda somente de exemplares é estagnação e burrice.”

Consagrados
Em todo caso, se há essa grande movimentação em torno dos quadrinhos, é natural que, ao mesmo tempo em que surgem novos nomes, alguns outros já se estabilizem como grandes referências nacionais. Dentre os artistas da área, excetuando-se Mauricio de Sousa, os quadrinistas de maior destaque que temos são Fábio Moon e Gabriel Bá, autores de “Daytripper”, respeitados internacionalmente e que em breve lançarão uma versão adaptada para “Dois Irmãos”, romance de Milton Hatoum. Outros que merecem destaque são Marcello Quintanilha (que lança neste ano “Talco de Vidro”, pela Veneta) e Eloar Guazzelli. Ambos, segundo Assis, “produzem quadrinhos no mesmo nível artístico do melhor que se faz no mundo”.

Juntando nomes consagrados e que começam a despontar, Gusman faz um raio-X dos artistas nacionais da área e vai ao encontro do que disse Vin, o editor da Nemo. “Criativamente falando, também nunca vi um momento melhor de autores nacionais. Tem muita coisa para melhorar, a maior parte dos bons quadrinhos você só acha em eventos, porque os independentes não têm distribuição, e muito leitor não consegue acompanhar coisas incríveis que estão saindo de maneira independente. É muita gente fazendo quadrinhos de ótima qualidade, que precisariam de mais espaço”.