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Boa obra inacabada de João Ubaldo Ribeiro narra noites do Leblon

João Ubaldo Ribeiro, que morreu em julho de 2014, deixa obra inacabada - Divulgação
João Ubaldo Ribeiro, que morreu em julho de 2014, deixa obra inacabada Imagem: Divulgação

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

11/11/2014 05h00

Nas primeiras décadas do século 20, o norte-americano Scott Fitzgerald se apropriou como poucos das intermináveis festas da alta sociedade de seu país para criar suas narrativas, dentre elas o clássico “O Grande Gatsby”. No Brasil, João Antonio, nos anos 1960, fez com que seus personagens peregrinassem por botecos paulistanos em "Malaguetas, Perus e Bacanaço". Atualmente, quem frequentemente transpõe para textos a mesa do bar e, principalmente, tudo o que a envolve é Xico Sá. São três exemplos de escritores que criaram obras com bafo de cachaça ou champanhe e que revelam –e por vezes idealizam– a noite das grandes cidades.

Quando morreu, em julho deste ano, aos 73 anos, João Ubaldo Ribeiro trabalhava em "Noites Lebloninas", seu volume sobre a boemia. Seria uma série de contos a respeito da noite carioca –do bairro onde vivia, mais especificamente. Uma pena, o tempo só permitiu que dois textos se aproximassem de uma versão final. O autor "morava havia vinte anos no Leblon, escrevera e publicara centenas de crônicas ambientadas na área e mantinha relações de afeto com os donos, funcionários e frequentadores de farmácias, lojas diversas, bancas de jornal e, sobretudo, dos bares do bairro", lembra o poeta Geraldo Carneiro, amigo de Ubaldo, no prefácio do livro que acaba de ser lançado com as duas histórias existentes.

Ubaldo, que já havia reunido crônicas boêmias em "O Rei da Noite", foi um escritor que não só viveu a boemia, mas se afundou em seu principal combustível, o álcool. Foi bebendo que tentou se curar de uma depressão. Tudo que conseguiu foi se tornar um alcoólatra e quase morrer por conta de uma pancreatite. Conseguiu se recuperar e passou mais de uma década sem colocar uma gota de bebida na boca. Quando voltou à prática, voltou disciplinado, bebericando chopes contados apenas aos sábados e domingos junto de seus amigos no Rio de Janeiro, cidade que escolheu para ser sua morada após deixar a Bahia.

As noites

Ainda no prefácio, Carneiro conta que Ubaldo levou mais de dez anos para conceber "Noites Lebloninas", esbarrando principalmente na dificuldade de "inventar a fala de uma cidade que só conhecera de perto depois dos quarenta anos". Não se daria por satisfeito reproduzindo o bairro onde morava, queria que de sua prosa emergissem personagens que encarnassem o espírito e a fala dos cariocas. Encontrou a solução ao criar o narrador dos contos de "Noites Lebloninas", um baiano, porteiro de edifício de classe média-alta, há muitos anos morador do Leblon, como o próprio escritor.

No primeiro conto, que leva o mesmo título do livro, o narrador é também o protagonista da história. Ocupando um lugar privilegiado, de onde pode observar e, por vezes, cuidar da vida de parte dos moradores do bairro, o porteiro desfia sabedoria sobre as noites do Leblon, colocando-nas em uma espécie de misterioso pedestal. Mostra-se ciente de que nunca deve se intrometer no que não lhe diz respeito e que não é recomendado encarar essas noites sendo um leigo no assunto, sob risco de acabar mal.

Enquanto traça o relato de um dos seus próprios apuros, em digressões apresenta outros personagens, como o sábio doutor Camilo –que, no bar, aposta com seus colegas médicos quais pacientes morrerão primeiro-, coronel Duarte, que está mais morto do que vivo, e Rodriguinho Saqualulu, que merece um parágrafo à parte.

Rodriguinho Saqualulu vive na cobertura do prédio que tem o narrador como porteiro. Recebeu a alcunha que virou praticamente um sobrenome após, há muitos anos, viajar para Saquarema, mas não sem antes deixar algumas cartas com um amigo que morava em Honolulu para que ele as mandasse fingindo que Rodriguinho estava no Havaí. Claro que logo o playboy foi desmentindo, ficando apenas com o apelido de Saqualulu, a junção de Saquarema com Honolulu.

Ciente da barreira social que separa a portaria da cobertura, o porteiro estranha quando é convidado por Rodriguinho para, junto de Demostes, responsável pela portaria de um edifício vizinho, participar da festa de aniversário do playboy. A comemoração é um encontro dos três com seis mulheres –três decadentes com outras três amigas desconhecidas– na suíte mais cara de um dos principais motéis do Rio de Janeiro. Graças às misturas de bebida que tomaram enquanto esperavam as beldades, pouco resta da noitada na memória do porteiro, o que é uma pena. Pelas parcas lembranças –uma das belezuras era um travesti, por exemplo–, é possível imaginar que o “Zirra-Zirra” foi daqueles dignos de Reinaldo Moraes, um dos escritores que, hoje, melhor constrói loucas cenas de sexo --vide "Pornopopéia". Porém, o que acontece na noite fica na noite, como já sabemos.

Capa de "Noites Lebloninas", obra inacabada de João Ubaldo Ribeiro - Divulgação - Divulgação
Capa de "Noites Lebloninas", de João Ubaldo Ribeiro
Imagem: Divulgação

Uma provável grande obra

O segundo conto, "O Cachorro Falafina e Seu Dono Dagoberto", é mais breve e traz o porteiro contando a história da parceria de sucesso entre Dagoberto e Falafina, um cão que ajuda seu dono nas conquistas amorosas, mas que acaba traído depois que Dagoberto se apaixona por um rapaz.

Ao analisar os dois contos, nos deparamos com trechos que possivelmente seriam melhorados, mas que não chegam a comprometer a obra. Também é possível observar algumas das qualidades que, provavelmente, estariam presentes em todo o livro caso ele tivesse sido concluído, e isso é o mais importante. Ubaldo constrói um narrador que representa bem o tal brasileiro médio. Apesar de bradar que não tem nada "contra aquele que pratica a veadagem" e que “somente os ignorantes é que alimentam raiva da veadagem”, logo diz que "estão querendo criar a carteirinha de veado para passar na frente em qualquer fila e pagar meia no cinema […] assim como não está certo que o veado vá além da veadagem, abrace o veadismo e queira converter todo mundo à sua preferência, tornando a veadagem obrigatória e ensinada na escola". Discursos semelhantes abundam dentre os “tolerantes”, principalmente nas redes sociais.

Ao falar sobre pessoas de diversos cantos do país, o porteiro também desfila caricaturas. No livro, os cariocas e baianos “têm por ideal não fazer nada, residir na praia, viver de bermuda e havaiana, jogar conversa fora por entre cervejas e risadarias sem deixar de dar grande valor ao intercâmbio sexual e aos fenômenos artísticos, poéticos e filosóficos, são povos irmãos”. Já a paulista, recatada, só vira uma louca na cama após despachar toda a papelada do trabalho. No Rio Grande do Sul, “a taxa de veadagem é sobremaneira elevada, dado que eles lá são tão machos que a machidão transborda e resulta nessas consequências que nem a ciência explica”. Esses traços do personagem que nos permitem olhar para o humorado texto do escritor e perceber como das entrelinhas do humor surgem temas complexos, como o preconceito.

Uma das principais obras de Ubaldo, “A Casa dos Budas Ditosos”, já havia sido deliciosamente bem-humorada e, pelo pouco que temos de "Noites Lebloninas", podemos imaginar que estava a caminho outro ótimo volume que seguiria a mesma linha. Foi interrompido apenas com os dois primeiros contos, que já valem por si só, diga-se, e revive a saudade que Ubaldo deixou. Bom seria se ele ainda estivesse por aqui, tomando os seus chopes, dando aquela risada grave, lenta e cadenciada à mesa de um boteco –e ampliando a sua bela obra, é claro.

Leia abaixo um trecho do livro:

“E de fato minha memória só recomeçou pouco antes do amanhecer da segunda-feira, a suíte parecendo que tinha saído de uma guerra de alemão contra japonês, todo mundo destroçado e despencado. Adelaide com uma algema pendurada no pulso e Saqualulu vestindo uma espécie de cinta-liga preta, todo estatelado. Só lembro como se fosse os melhores momentos de uma transmissão de futebol, mas no caso são todos piores momentos. Quais são os fatos? Não consigo manter nada na ordem, mas é fato que se deu o trágico momento em que descobriram que a paulista Silvana era travesti, travesti muito bonita, mas com todos os equipamentos masculinos. Participantes? Eu não fui nem sei dizer quem foi, e desminto qualquer coisa que disserem.”

"Noites Lebloninas"
Autor: João Ubaldo Ribeiro
Editora: Alfaguara
Páginas: 104
Preço: R$29,90