Fora da TV, mercado de anime no Brasil se garante na internet e em eventos
Em sua 12ª edição, que chegou ao fim neste domingo (27), o festival de cultura pop Anime Friends reuniu 110 mil pessoas no Campo de Marte, em São Paulo, em torno de shows, palestras, exposições e concursos ligados ao universo dos mangás e animes --as HQs e desenhos animados japoneses. O número impressiona os desavisados, mas não surpreende Takashi Tikasawa, presidente da Yamato, empresa que organiza o evento desde as primeiras edições --que aconteciam em espaços mais reduzidos, como vãos livres de escolas e faculdades.
"No ano passado, trouxemos 116 mil pessoas. Se o tempo ajudar, quero um público de 140 mil", disse o empresário ao UOL no final da semana passada, já imaginando que a chuva e o clima frio dos últimos dias pudessem afetar um pouco o movimento. Apenas como comparação, 140 mil é o público que uma convenção como a San Diego Comic-Con, que atualmente concentra os principais lançamentos dos estúdios de cinema de Hollywood, costuma reunir. No Anime Friends, as estrelas são bem mais específicas, como a cantora japonesa You Kikkawa, a premiada cosplayer Reika ou mesmo o dublador brasileiro Gilberto Baroli, que empresta a voz ao popular anime "Cavaleiros do Zodíaco".
"Por mais que a gente faça a divulgação e tenha o boca a boca do público, muitas empresas ainda não conhecem esse mercado. Elas consideram isso um nicho", diz Tikazawa, sobre a ausência de grandes patrocinadores bancando os custos estruturais do Anime Friends, sem revelar os valores. "Quando abordávamos uma multinacional, eles perguntavam o público esperado. Quando eu dizia '100 mil pessoas', eles falavam: 'Tá, agora diga a verdade. São só dez mil, né?'. Eles não acreditam nos números, mas agora estão começando a se interessar."
Mesmo com um público médio mais receptivo a outros tipos de entretenimento --esta edição teve shows de bandas de metal como Almah e palestra do autor de "X-Men" Chris Claremont--, o pilar principal do Anime Friends ainda é a cultura pop japonesa.
Olhando pela superfície do atual mercado brasileiro, fica difícil apostar que um evento para aficionados por esse gênero ainda represente um segmento tão engajado e lucrativo. Diferente do que ocorria na última década, não há hoje uma febre vinda do Japão com evidência popular maciça, caso de produtos multimídia irresistíveis como "Pokémon", "Cavaleiros do Zodíaco", "Dragon Ball-Z", "Yu-Gi-Oh!" e, mais recentemente, "Naruto". Mas se a adoração por produtos nipônicos se encontra longe do radar da mídia mainstream, isso não quer dizer que ela tenha pouca intensidade.
Animes fora do eixo
Todos os especialistas entrevistados pelo UOL concordam que a apreciação da cultura pop japonesa pelo brasileiro, antes fomentada por animes em exibição em canais abertos e pelo nicho dos mangás, sofreu uma transformação drástica nos últimos anos. E para melhor.
No caso das animações, a mudança de paradigma começou pelos canais de TV aberta, que tiraram o foco dos animes. A razão vem do elevado custo de licenciamento de novos títulos com as produtoras japonesas, além do investimento maior em produtos norte-americanos, como blockbusters de super-heróis e séries de TV --um investimento mais seguro, do ponto de vista comercial.
Havia também a dificuldade das emissoras de lucrar em longo prazo com as febres. Quando um novo anime chegava à TV aberta, já havia a expectativa de um público inicial gerada pela internet. A exibição do desenho por tempo indefinido gerava uma boa audiência, e empresas aproveitavam para surfar a onda e vender produtos licenciados, como roupas, cadernos, álbuns de figurinha e brinquedos.
Porém, por causa da natureza narrativa singular da maioria dos animes, as constantes reprises de episódios não necessariamente garantiam novos fãs. “Animes não são como um desenho do Pica-Pau, mas como novelas, com começo, meio e fim”, explica o jornalista especializado Renato Siqueira. “Exibir infinitamente os mesmos episódios enjoava, e aí com o tempo aquele sucesso todo acabava. E sem a certeza de retorno, nenhum investidor põe grana nisso.”
A internet, por outro lado, manteve aceso o culto ao anime, em uma revolução afastada da grande mídia, mais robusta e auto-suficiente. Se hoje esses programas são raros nas grades de Globo, Bandeirantes e Record, eles estão mais do que nunca à disposição para download e streaming ilegais, oferecidos por fãs engajados que traduzem episódios e os disponibilizam no mesmo dia em que são exibidos no Japão.
Há ainda a popularização de serviços online pagos, como o Netflix e o Crunchyroll (este voltado apenas para animes), o que gera o interesse não só pelos sucessos óbvios, mas também por produções independentes de menor porte. Se uma mania unânime como a que se deu com "Pokémon" é rara, hoje o aficionado tem acesso irrestrito a uma infinita variedade de material à disposição. “O anime só não aparece mais no que achamos que ainda é o mainstream”, diz Siqueira. “E se o mainstream é a TV aberta, então ela realmente não faz mais nenhuma diferença para os fãs.”
Em preto e branco, de trás para frente
O mercado dos mangás no Brasil corre pelo sentido inverso ao dos animes. Nos últimos anos, houve um estouro na quantidade de títulos disponíveis oficialmente. “Há dez anos tínhamos uns dez mangás em bancas. Hoje são mais de 40. Temos tiragens menores, mas mais variedade e qualidade do que antes”, diz Cassius Medauar, gerente de conteúdo da editora JBC, que lança cerca de 15 títulos por mês. A principal concorrente, a editora Panini, publica quantidade de edições semelhante pelo selo Planet Mangá. “O público mudou bastante”, afirma Medauar. “O mercado de mangás se consolidou, temos uma base fiel e um público que entende e conhece os títulos, e com isso ficou mais exigente.”
“Até existe uma renovação de leitores”, ele continua. “Mas não ter muitos animes em TV aberta é uma grande perda. E hoje existe uma concorrência muito maior --TV a cabo, internet, videogames. Tudo é muito caro e o consumidor é um só, e muitas vezes precisa escolher o que quer.”
Tão importante quanto a oferta de animes e informações trazida pela internet, a fartura de mangás nas bancas brasileiras também é considerada um fator crucial para manter o interesse do brasileiro pelos produtos do Japão. “Com a saída dos desenhos da televisão, o que inundou o mercado foram os mangás. Hoje tem muitos. E o mangá e a internet se tornaram o eixo para que as pessoas conheçam todo o resto”, diz Tikasawa.
O fator musical
Também importante, ainda que não tão facilmente perceptível, é o papel da música entre os fãs de cultura pop oriental. Nas primeiras edições dos eventos, a demanda do público era compensada por shows de cantores japoneses de músicas-tema de desenhos, de seriados live-action e de videogames, os chamados “anime songs”. Hoje, esses artistas mantêm em alta o apelo com os fãs, mas dividindo espaço com bandas de rock pesado (não necessariamente de origem oriental) e grupos vocais de música pop --neste caso, tanto japonês quanto coreano.
“Nunca vi tanta convenção de anime e mangá aqui e lá fora. E nunca o público esteve tão antenado com o que está rolando no Japão. Vejo pela minha própria experiência: hoje vivo de fazer shows nessas feiras”, conta Ricardo Cruz, cantor paulistano especialista em anime songs. Desde 2005, ele faz parte do JAM Project, grupo de cantores ícones do gênero no Japão, na condição de único integrante estrangeiro. “De uns anos para cá, os anime songs cresceram muito no Japão. E como o Brasil e os outros países refletem o que acontece por lá, mais pessoas estão descobrindo via internet esse nicho e toda a variedade que existe dentro dele”, afirma.
Cruz se orgulha de ter largado uma carreira no jornalismo há dois anos para se dedicar exclusivamente às músicas cantadas em japonês, shows, aparições em eventos e a um canal de YouTube, Mugen Lab., para a divulgação do gênero. No Anime Friends, ele lançou o projeto solo "On the Rocks", um EP com músicas cantadas em japonês. “Quero levar o anime song para outro patamar, misturar com outros estilos, mesclar outros idiomas, sei lá”, diz. “Preservar o que é essencial e brincar com o resto.”
Um olho no ocidente
Atualmente, os eventos para fãs de cultura pop funcionam como o porto seguro de um público devoto, menos dependente do mainstream do que nunca. Além de mais jovem e eclético do que dez anos atrás, o atual frequentador também se interessa em manter viva a chama do underground, cultuando artistas obscuros só conhecidos pela internet e cobiçando não apenas merchandising oficial, mas também produtos customizados por outros fãs.
“[Os eventos] não estão escancarados como os artistas globais, e, do ponto de vista de um velho investidor, não estão no mainstream”, afirma Renato Siqueira, que também é um dos organizadores do Sana, festival de cultura pop que aconteceu neste fim de semana em Fortaleza (CE). “Mas neles se concentram um volume enorme de público infanto-juvenil e consumidor. Os eventos sobrevivem desses fãs.”
No caso do Anime Friends, o sucesso do formato atual veio de uma quebra de paradigma. Criado em 2003 como uma reunião de fãs de animes e mangás regada a shows musicais de cantores orientais e concursos de cosplay, o evento tem exibido um leque mais aberto. Desde 2010, a programação reserva um bom espaço para atrações não necessariamente ligadas ao universo oriental, como convenções para fãs de Star Wars e Star Trek, encontros de jogadores de RPG e estandes de empresas de games online, escolas de cursos e de celebração aos brinquedos Lego e Playmobil.
“O público quer entretenimento como um todo. Ele não vem por causa de um anime, mas porque tem game, RPG, seriado, de tudo”, admite o organizador Takashi Tikasawa. “O evento se tornou um canal de divulgação do mundo geek-nerd-pop em geral. Deixou de ser um pop japonês para virar um pop mundial. As pessoas não ficam mais focadas em um único nicho. São mais cabeça-aberta.” O empresário planeja um passo adiante nessa direção “a oeste”, com a criação de um novo evento com foco no entretenimento de origem ocidental, o Brasil Comic Con, previsto para novembro em São Paulo. Já em dezembro, a cidade também receberá o evento estreante Comic Con Experience, com o mesmo tipo de enfoque.
Anime Friends tem mostra dedicada a fãs de Playmobil
* Pablo Miyazawa é jornalista especializado em cultura pop. Foi editor-chefe da revista Rolling Stone Brasil e editor das revistas Herói, EGM Brasil, Nintendo World e Pokémon Club
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