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Avaliada em R$ 60 mi, edição rara de Shakespeare motivou rede de intrigas

Exemplar de edição completa do "Primeiro Folio" de William Shakespeare, datado de 1623 - Reuters
Exemplar de edição completa do "Primeiro Folio" de William Shakespeare, datado de 1623 Imagem: Reuters

Daniel Buarque

Do UOL, em Londres

24/04/2014 04h00

Diretor da Biblioteca Folger Shakespeare, em Washington DC, Richard Kuhta achou estranho quando foi convocado de forma repentina para avaliar o livro que um homem de 50 anos, vestido como se tivesse acabado de sair da praia, carregava debaixo do braço. O ano era 2008, e a obra apresentada estava danificada, com páginas faltando e pedaços caindo, mas o bibliotecário reconheceu quase imediatamente o valor histórico do que tinha em mãos: uma rara cópia do "Primeiro Folio" de William Shakespeare, obra frequentemente descrita como “o mais importante livro em língua inglesa”, de valor avaliado em milhões de dólares e que é ainda mais celebrada no momento em que se comemoram os 450 anos de nascimento do dramaturgo inglês.

O livro, que reuniu pela primeira vez todas as peças escritas por Shakespeare até a sua morte, em 1616, teria sido levado aos Estados Unidos depois de haver sido descoberto pelo playboy milionário britânico Raymond Scott em uma velha biblioteca familiar de Cuba. Kuhta pediu um tempo para avaliar o livro e o que se sucedeu foi uma investigação internacional envolvendo o FBI, a polícia britânica, Cuba, peritos internacionais e uma análise do “DNA” do livro.

O resultado dos estudos indicou que se tratava mesmo de um autêntico exemplar do "Primeiro Folio", com valor estimado em até R$ 60 milhões. A rede de intrigas se completou, entretanto, quando se descobriu que a obra era a mesma que havia sido roubada da Universidade de Durham, na Inglaterra, uma década antes, e que Scott posava de playboy, mas não tinha os milhões que fingia ter.

"O 'Primeiro Folio' não é um livro que aparece assim tão facilmente", disse Kuhta em entrevista a um documentário sobre o roubo e a descoberta dessa cópia da primeira coletânea de obra de Shakespeare. O livro foi impresso originalmente em 1623 com tiragem de cerca de 700 cópias. Levantamentos recentes dão conta de que hoje existem pouco mais de 200 - e quase dez dessas edições conhecidas estão "desaparecidas".

Segundo o diretor da Biblioteca Bodleian, da Universidade de Oxford, Richard Ovenden, o "Primeiro Folio" é até mais importante de que os "quartos", pequenos livros publicados enquanto o próprio Shakespeare ainda era vivo. "Ele reúne os textos já publicados como 'quartos', mas inclui ainda 20 peças que nunca haviam sido publicadas antes e que só sobreviveram ao tempo por causa dessa coletânea", disse, em entrevista ao UOL. "O 'Primeiro Folio' foi responsável por estabelecer a reputação de Shakespeare", completou.
 
Esta primeira coletânea dos escritos do dramaturgo inglês já foi estudada exaustivamente por acadêmicos. Por conta das limitações tecnológicas da impressão de livros no século 17, cada cópia do livro possui características próprias, com marcas diferenciadas e detalhadamente catalogadas. "É como ter o DNA de cada livro", disse Kuhta. Isso levou especialistas a buscarem saber de onde havia saído a cópia apresentada por Scott.

A análise usou registros de todos os 'Primeiros Folios' conhecidos e indicou que o livro era o mesmo que havia sido roubado em 1998, em Durham. Ele fazia parte de um conjunto de dez obras históricas levadas da universidade. Estavam dentro de uma caixa de vidro fechada com um cadeado que fora forçado. Na época, não havia câmeras de segurança no local. E o livro passou uma década desaparecido.
 
Preso, Scott negou envolvimento no crime e foi absolvido pelo roubo da obra, mas foi condenado pela posse do livro roubado e por danificá-lo --ele morreu na prisão em 2012. "O livro estava mutilado", disse Kuhta. Páginas estavam faltando, e a obra não aparentava ter envelhecido em uma estante como era argumentado. O dano para a cultura humana era como "passar uma navalha nos girassóis de Van Gogh", disse. No julgamento, a edição do século 17 foi exposta como prova do crime, e a imprensa britânica comemorou por se tratar de uma das poucas exposições públicas da obra.
 
Pode ver, mas não pode tocar
Além das encenações públicas, os textos de Shakespeare começaram a ser publicados em livro em 1594. As publicações eram feitas em formato de "quartos", um pequeno panfleto produzido de forma barata que ganhou este nome pela forma como a impressão era feita. Os "quartos" são produzidos pela impressão de oito páginas de livro em cada folha de papel. O papel em seguida é dobrado duas vezes e se transforma em quatro páginas em frente e verso, para ficar no formato colocado em seguida no livro. Segundo pesquisadores da Biblioteca Britânica, o mais provável é que a primeira publicação tenha sido a sangrenta tragédia "Titus Andronicus". 

"Primeiro Folio" do executivo da Microsoft Paul Allen - Jeff Barnard/AP - Jeff Barnard/AP
Um dos poucos exemplares do "Primeiro Folio" é guardado em uma caixa de vidro pelo bilionário da Microsoft Paul Allen
Imagem: Jeff Barnard/AP

Estudos da Biblioteca Britânica indicam que, na época em que Shakespeare começou a escrever suas peças, já havia um mercado de livros estabelecido e crescente em Londres. A impressão de peças de teatro, entretanto, era apenas uma pequena parte da produção e do comércio de obras em geral, pois ela não era tão lucrativa (especialmente para os dramaturgos, que vendiam seus direitos).

As obras eram vendidas em sua época sem serem encadernadas de forma apropriada, o que faz com que a quantidade de peças sobreviventes desse período seja muito pequena. Os mais antigos "quartos" de Shakespeare têm mais de 400 anos e são o mais raro e mais frágil corpo de literatura impressa disponível para estudiosos do dramaturgo. São "artefatos vivos" da história de Shakespeare e da sua obra.

Por conta da raridade e do valor inestimável desses "quartos", as obras não podem ser expostas permanentemente, nem podem ficar à disposição de centenas de estudiosos e pesquisadores interessados em entender melhor os textos originais de Shakespeare. Por isso, uma ação conjunta de instituições dos EUA e da Inglaterra passou a digitalizar todas as obras existentes e oferecer acesso livre a elas pela internet. Assim nasceu o Shakespeare Quartos Archive, uma expansão da digitalização que já era feita na Biblioteca Britânica e que reúne uma coleção de pelo menos uma cópia de todas as edições de obras de Shakespeare publicadas em "quartos" até 1642.

A página permite que estudiosos tenham acesso aos textos originais (que podem ser baixados e impressos). Usuários interessados podem sobrepor diferentes publicações, comparar imagens de "quartos" originais lado a lado, fazer buscas no texto original, marcar e taguear as páginas, fazer anotações e criar exibições. O projeto foi iniciado em 2009 e ainda está em desenvolvimento. Já é possível, entretanto, analisar 32 versões diferentes de "Hamlet".

As poucas cópias sobreviventes de impressões de Shakespeare da virada do século 17 estão guardadas com cuidado por algumas das mais sérias instituições do mundo, e seu valor é considerado incalculável.

Como não é uma obra que se ache facilmente à venda, o valor de mercado da relíquia é incerto e costuma ser avaliado dependendo do estado de conservação de cada livro. Vendido originalmente em 1623 por uma libra, o "Primeiro Folio" hoje em dia tem seu valor calculado em milhões de libras (multiplique por quatro para ter uma noção do valor em reais) e dificilmente fica acessível ao público.

Desde o roubo da edição que ficava na Universidade de Durham, em 1998, as instituições que têm alguma cópia de obras históricas da importância dessas primeiras edições de Shakespeare passaram a redobrar os cuidados com a segurança. A Biblioteca Britânica, por exemplo, sequer informa onde e como estão guardadas as obras.