Reni Adriano fala do processo criativo que o levou a escrever "Lugar"

MARTA BARBOSA
Colaboração para o UOL

“Lugar”, do estreante nas prateleiras Reni Adriano (editora Tinta Negra), é um livro raro. Primeiro por ser um lançamento que destoa por completo do panorama de novidades das livrarias. É tanta originalidade que nem parece estreia, menos ainda de um moço de 29 anos. É raro também pelo primoroso trabalho de investigação narrativa, embora jovem, bastante maduro, e muito, muito bom de ser lido. Nesta entrevista, o jovem escritor fala do seu processo criativo, das fontes de inspiração e futuros projetos.

  • Acervo pessoal

    Reni Adriano: estilo único aos 29 anos se manifesta em "Lugar"

UOL: Como nasceu "Lugar"?
Reni Adriano: Meu processo criativo nunca começa pelo argumento ou pelo enredo. Sinto, antes, uma pulsação interior à procura de uma forma. É quase como uma estrutura se armando nos subterrâneos, e eu nunca sei o que está acontecendo, só sei que estou criando. Me vem um ritmo interno, mas desprovido de palavras, e o que faço é provocar esse ritmo, forçá-lo a ser ao menos um murmúrio compreensível. Então, é um momento em que posso escrever diálogos inteiros sem ter a menor ideia de quem está falando. Pode ser uma única palavra, também, que eu sei que será fundamental para a trama. Vou juntando esses fragmentos numa pasta e a cada vez que os leio sinto a mesma pulsação estranha. E essa pulsação difere de texto para texto. Nunca é igual. Assim sigo, forçando-me a uma paciência que de ordinário não tenho, esperando a hora de juntar tudo e escrever. Até que um dia como que “entendo” o que vou contar e, eu queira ou não, é hora de escrever a história. Aí, costuma vir tudo de uma vez. No processo de "Lugar" foi assim. Isso que chamei de pulsação me acompanhou por quase cinco anos. Quando senti que, internamente, estava pronta toda a forma, comecei a escrever e o fiz em apenas dois meses. Era como trabalhar uma massa para preencher a estrutura e nesse trabalho a história se revelava. Cada palavra a preencher a estrutura é, para mim, uma enorme surpresa. Tomo grandes sustos e costumo me comover muito. "Lugar" me deixou dilacerado, eu não conseguia trabalhar e reprovei em várias matérias na faculdade. Escrevia numa compulsão que me exauria, uma tristeza infinita me tomava. Um amigo se viu obrigado a se instalar na minha casa para cuidar de mim. Escrito o livro, precisei ainda de um ano inteiro para me restabelecer. Toquei em coisas muito profundas, me lancei nelas. Trouxe à tona todos os demônios e fantasmas da infância, mas o que pesava mais era a sensação de que aí havia a força esmagadora de uma cultura, mais do que a minha vida particular. Eu não estava contando a minha vida, estava era lidando com o arcaico da nossa própria cultura. "Lugar" não é Minas Gerais revisitada, é a tensão fundadora de um universo mítico. Por isso a palavra é tão densa: ela é a possibilidade da criação de um mundo, ao tempo em que este mundo se volta contra a palavra.

"Lugar me deixou dilacerado, eu não conseguia trabalhar e reprovei em várias matérias na faculdade. Escrevia numa compulsão que me exauria, uma tristeza infinita me tomava. Um amigo se viu obrigado a se instalar na minha casa para cuidar de mim.

Reni Adriano, autor de"Lugar"

UOL: Que livros (ou que autores) você lê frequentemente? E quais te inspiram a escrever?
Adriano: Nenhum autor me inspira a escrever. Isso acontecia quando eu tentava imitá-los, na adolescência: Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, Fernando Pessoa... Hoje, quando leio, faço-o justamente por não necessitar escrever. Quando leio um livro ótimo, agradeço e digo: “Que maravilha ter havido essa pessoa para escrever isso para mim, pois eu não seria capaz!” É o que sinto ao ler Hilda Hilst, Guimarães Rosa, José Donoso, Adélia Prado, Orides Fontela, e mesmo filósofos, como Michel Foucault, Nietzsche, Emmanuel Lévinas... É quando digo também: “Que maravilha haver o outro! Amo ao outro muito mais do que a mim mesmo! O outro me faz prescindir de mim. Que descanso!”

UOL: O que muda na carreira de um escritor iniciante que já começa sendo premiado?
Adriano: Pelo o que tenho ouvido de quem recebeu algum prêmio, isso gera um peso enorme! Mas, para mim, é finalmente a leveza alcançada. Eu achava que o que eu fazia era muito estranho, e que talvez eu fosse até idiota, pois muitas vezes via que a nova sensação era ser “urbano, urbano, urbano” - e eu não era, e não via o menor sentido nessa designação, assim como não vejo sentido em “literatura de periferia”, por exemplo. O que eu perseguia se chamava apenas literatura e pronto, assim como no teatro não existe essa diferenciação; há, sim, outras formas de segregação nas artes cênicas, mas não esta de exigir que o cara fale da cidade - e de preferência de modo que o leitor identifique de pronto a geografia e de antemão se sinta confortável, num posto em que possa se sentir, desde o princípio, “crítico” e “antenado”. Assim, no meu caso, ser premiado por um júri respeitável mostrou que havia, sim, lugar para meu trabalho, que não era o caso de deixar o que escrevo engavetado, como era o que eu pensava ser o destino dos meus textos. O retorno dos leitores tem confirmado isso. Recebo e-mails surpreendentes, de pessoas se encontrando comigo.
 

SAIBA MAIS SOBRE "LUGAR", DE RENI ADRIANO


UOL: Trabalha em algum livro agora? Qual?
Adriano: Estou naquela fase “pulsional”, como disse que é o meu processo criativo. Às vezes choro copiosamente porque descobri a morte de uns meninos - e sem saber que meninos são esses, apenas a sensação insuportável e algumas frases. Mas já sei que será um livro sobre o perdão. O título também já me ocorreu, e isso me ajuda muito, pois endossa um pouco mais a tônica do que estou por descobrir nesse processo. Mas não posso dizer qual é. Até que escreva, é importantíssimo o máximo de silêncio. Se falar muito, periga eu resolver na fala e não escrever.

UOL: Com que autor gostaria de ser comparado?
Adriano: Sinceramente, com quem o leitor quiser ou puder relacionar. Dia desses alguém achou alguma relação entre mim e Graciliano Ramos, o que eu acharia improvável. Mas, quem leu Graciliano (ou qualquer outro autor) teve uma experiência muito particular com ele, não tenho o direito de dizer se é certo ou errado. Aliás, fico muito feliz que exercitem essa liberdade. Em última instância, quem sabe menos do meu livro sou eu mesmo. E entenderia, inclusive, se alguém dissesse: “Seu livro só se compara a nada. É péssimo!”. Soube recentemente de uma leitora que está me odiando, mas não consegue se desgarrar do livro, me amaldiçoando, dizendo que não consegue ler, que não entende... Me senti muito solidário a ela, pois pensei na angústia e desamparo que senti ao escrever "Lugar".


"Lugar"
Autor: Reni Adriano
Editora: Tinta Negra
Páginas: 112
Preço: R$ 29

 

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