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Marvel vs. Crivella: O que diz a lei sobre ação da Prefeitura do Rio contra obra que mostra beijo gay

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Imagem: Reprodução

Leandro Machado e Luiza Franco

Da BBC News Brasil, em São Paulo

06/09/2019 18h49

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PSC), empreendeu uma campanha contra a graphic novel Vingadores: A Cruzada das Crianças, da empresa americana Marvel.

Para a prefeitura, o livro contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por mostrar um beijo entre dois personagens gays em uma de suas páginas. "A prefeitura entendeu inadequado, de acordo com o ECA, que uma obra de super-heróis apresente e ilustre o tema do homossexualismo a adolescentes e crianças, inclusive menores de 10 anos, sem que se avise antes qual seja o seu conteúdo", afirmou.

Em vídeo na internet, Crivella afirmou que "livros que trazem conteúdo sexual para menores precisam estar embalados com plástico preto, lacrados, e com aviso do conteúdo". Ele completou: "a Prefeitura do Rio de Janeiro está protegendo os menores da nossa cidade."

A obra, segundo a prefeitura, estaria posta à venda lacrada, mas sem a advertência "para que as pessoas fizessem sua livre opção de consumir obra artística de super-heróis retratados de forma diversa da esperada".

Nesta sexta-feira, uma equipe da prefeitura fez uma vistoria na Bienal do Livro para verificar se obras com "conteúdo impróprio" estavam sendo vendidas de "maneira inadequada". A intenção era recolher o material, se fosse o caso. Depois, a prefeitura afirmou que não encontrou a publicação na feira.

Mas, afinal, o que diz a lei sobre o assunto?

Em seu Artigo 78, o ECA diz que "revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes" devem ser vendidas em embalagem lacrada, com a advertência sobre o conteúdo.

O estatuto também determina que "as editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca." Porém, ao contrário do que diz a prefeitura, a legislação não define o que seria "impróprio" - seja um beijo hétero ou homossexual.

O defensor Rodrigo Azambuja, coordenador de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, diz que o ECA não especifica quais tipos de conteúdo se enquadram na categoria de "impróprio", mas há materiais que são inegavelmente inadequados para crianças, como aqueles que trazem temática de violência ou pornografia.

Segundo ele, porém, há outros que são claramente próprios: beijos e demonstrações de afeto entrariam nessa segunda classificação, por serem comportamentos comuns. Ele lembra que casais homoafetivos têm direito à união civil desde 2011 e que a homofobia foi considerada um crime equivalente ao racismo pelo STF.

Para Thiago Amparo, professor de direitos humanos e diversidade da FGV-Direito de São Paulo, a ação da prefeitura do Rio foi discriminatória, porque considerou que apenas o beijo homossexual era inadequado. "A prefeitura não teria agido se o beijo fosse entre dois personagens heterossexuais. A ação não ocorreu pela suposta obscenidade do fato, e sim por quem está dando o beijo", diz.

O advogado Ariel de Castro Alves, do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de São Paulo, diz que, na época em que o ECA foi escrito, nos anos 1990, cenas de beijos entre casais homoafetivos não eram tão comuns em produções audiovisuais e literárias, mas que esse cenário mudou.

"Hoje, os beijos entre casais homoafetivos são comuns nas ruas, shoppings e nos transportes coletivos assim como os beijos entre casais héteros. Nada de anormal, inadequado e muito menos pornográfico", explica.

Para o caso de produções audiovisuais, o Brasil possui uma Classificação Indicativa. Porém, nem esse documento tem o poder de vetar ou censurar qualquer produção. Serve apenas como uma "informação prestada às famílias sobre a faixa etária para a qual obras audiovisuais não se recomendam", segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Decisão não cabe à prefeitura

Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a Prefeitura do Rio de Janeiro não tem poder jurídico para tentar retirar a HQ da Marvel dos estandes de vendas - mesmo que obra tivesse algum material considerado inadequado.

Para eles, a prefeitura poderia notificar a Justiça ou o Ministério Público caso considerasse que houve alguma violação da lei. Porém, a decisão de retirar ou não a obra de circulação partiria da Justiça - e não do prefeito. "A prefeitura não tem poder de ofício para simplesmente apreender um livro nesse contexto sem passar por um processo judicial", explica Thiago Amparo, da FGV-Direito.

"Não faz parte da conveniência e da discricionariedade da administração pública (opinar sobre o conteúdo de um livro). Senão, daqui a pouco vai caber a cada autoridade dizer o que é adequado ou não. E isso vai mudar se ela for conservadora ou liberal, de esquerda ou direita, de uma ideologia ou de outra", explica Alves.

Para o advogado Pedro Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, o sistema de proteção de crianças e adolescentes do ECA está sendo usado para embasar decisões de autoridade com base em conceitos pessoais.

"A lógica protetiva está sendo capturada para fundamentar visões subjetivas e pessoais sobre a realidade. Sobre a produção de conteúdo, o ECA também deve ser lido dentro de outros parâmetros, como a liberdade de expressão e o direito das crianças e adolescentes de viver em um ambiente plural, com acesso à cultura, à informação e às liberdades", explica.

Segundo Amparo, a Prefeitura do Rio de Janeiro poderá até responder por crime de homofobia com a ação que pretendia retirar os livros da Marvel da Bienal. "Existe uma lei estadual e também uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a criminalização da homofobia. A prefeitura poderia inclusive responder por incitar a discriminação contra a população LGBT", diz.

A prefeitura nega que tenha agido com homofobia e diz que cobra o "exercício do dever de informação quanto ao que se considerava material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes, exigindo-se, assim, o lacre e a advertência".