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Roberto Sadovski

Protestos, revolta, revolução: 10 vezes que o cinema botou o povo na rua!

Joaquin Phoenix enlouquece em meio à multidão em "Coringa" - Warner
Joaquin Phoenix enlouquece em meio à multidão em 'Coringa' Imagem: Warner

Colunista do UOL

08/06/2020 07h54

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A criação artística é um ato político. Manifestar-se ou não sobre o tecido político-social do mundo é, em si, uma tomada de posição. Seja no cinema, na música, na literatura, seja em qualquer expressão criativa, artistas buscam refletir o estado das coisas.

O mundo encontra-se, hoje, em um momento de polarização intensa. A população, mesmo sob a sombra da pandemia do coronavírus, tomou as ruas para se fazer ouvir. Seja revoltada contra o racismo, seja protestando contra um governo (e um governante) ignorante e incapaz, povo faz sua voz ser ouvida.

Com as ruas como palco incendiário, o cinema buscou o registro dessa voz ao longo dos anos. Às vezes dramatizando eventos reais. Outra, usando a fantasia como alegoria para questões bem reais. Sempre que o mundo ameaça queimar, uma câmera está ali para eternizar o momento.

Os filmes a seguir abraçaram o espírito revolucionário para mostrar que, no conflito entre opressor e opromido, e mesmo com as imesnas áreas cinzentas, só existe um lado certo. São histórias que colocam o público ora no centro da revolta, ora ao lado de personagens que testemunham a história.

Não importa onde, quando ou de que forma: o cinema permanece um espelho. Entre a civilização e a barbárie, não é exatamente uma escolha difícil.

A BATALHA DE ARGEL
(La Battaglia di Algeri, Gillo Pontecorvo, 1966)

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'A Batalha de Argel', de Gillo Pontecorvo
Imagem: Bretz Filmes

O italiano Gillo Pontecorvo não só registrou, entre documentários e longas de ficção, um mundo em conflito. Ele próprio esteve nas fileiras da resistência na Itália fascista durante a Segunda Guerra Mundial. Em "A Batalha de Argel", ele concentra suas lentes no revolucionário Ali La Pointe (interpretado por Brahim Hadjadj, que não era ator profissional) e seu papel durante a Guerra da Argélia, movimento de libertação nacional do domínio francês.

Um dos filmes fundamentais do cinema italiano, "A Batalha de Argel" usa um estilo quase documental que, somado às locações reais e ao elenco pinçado entre atores não profissionais que não raro viveram durante o conflito, confere à produção cara de relato histórico.

Pontecorvo procura-se em não romantizar a história, colocando o exército francês e os guerrilheiros da Frente de Libertação Nacional como dois polos em uma guerra urbana em que a maior vítima foi a população civil.

Toda a construção narrativa e cinematográfica resulta em um filme nervoso, de extrema urgência por se mostrar ainda tão atual. Basta substituir "Argel" por qualquer foco moderno de conflito político e vemos como a história teima em se repetir. Um filme essencial, o melhor já feito sobre guerrilha urbana. E uma cápsula do tempo que registra o preço às vezes amargo da liberdade.

A CHINESA
(La Chinoise, Jean-Luc Godard, 1967)

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'A Chinesa', de Jean-Luc Godard
Imagem: Versátil

Nos anos 60 Jean-Luc Godard reescreveu as regras do cinema francês com a nouvelle vague, disparando filmes revolucionários como "Banda à Parte", "Alphaville" e "O Demônio das Onze Horas". O verniz pop de sua obra caminhava em paralelo ao resgate da valorização do diretor de cinema como autor.

Godard nunca escondeu uma camada política em seu trabalho, mas com "A Chinesa" o diretor escancarou as ideias que já ferviam em sua mente: até que ponto uma ideologia vale a pena se ela não for traduzida em ação?

Aqui as alegorias dão lugar à provocação, encapsulada na história de um grupo de estudantes de inclinações políticas distintas que imaginam como moldar o mundo em um regime maoista usando violência em nome da revolução.

O tom satírico potencializa o flerte de Godard com as ideias da nova esquerda, que examinava tanto o legado da Revolução Russa como a atmosfera bélica causada pelas atividades militares americanas no sudeste asiático. No ano seguinte, a revolução estudantil em Paris marcou uma guinada política mais explícita em seu cinema. As sementes, porém, nunca estiveram tão evidentes como em "A Chinesa".

Z
(Costa-Gavras, 1969)

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'Z', de Costa-Gavras
Imagem: Reprodução

O diretor grego Costa-Gavras conseguiu, ao longo de sua carreira, envelopar a pólvora dos temas políticos em thrillers de tensão incessante. "Z", filme que o lançou ao mundo e ainda sua obra mais contundente, ainda tem a ousadia em terminar numa perseguição: como disse o crítico Robert Ebert, "Não de carros pelas ruas, mas em um labirinto de fatos, álibis e corrupção".

A trama, que espelhou sem pudores fatos da história política grega, segue o assassinato de um político de esquerda após um discurso sobre desarmamento nuclear (uma pauta "comunista") e a investigação que esbarrou na pilha burocrática deixada por políticos da direita que tentavam encobrir seu papel na ação.

Apesar do tema denso, Costa-Gavras injeta humor ácido em sua narrativa, criando um pesadelo político que pode resultar em um golpe militar e o banimento de qualquer manifestação de pensamento livre, como arte moderna, música pop e obras literárias. "Z" é assustador por continuar tão real em sua descrição de como o fascismo infiltra-se na sociedade como "salvador", e não mostra suas garras até ser muito tarde.

FAÇA A COISA CERTA
(Do the Right Thing, Spike Lee, 1989)

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'Faça a Coisa Certa', de Spike Lee
Imagem: Universal

Muito tem sido dito em relação a "Faça a Coisa Certa" ultimamente. Eu mesmo gravei um vídeo sobre a relevância do filme e de seu diretor, Spike Lee, nos dias de hoje. Não é mesmo ao acaso. Com o clima político nos Estados Unidos, em ebulição após o assassinato de George Floyd por um policial racista, a obra, lançada em 1989, parece ter sido concluída na manhã de hoje.

A trama desenvolve-se no dia mais quente do verão em uma parte do Brooklyn, em Nova York. O ítalo-americano Sal (Danny Aiello) mantém sua pizzaria como referência no bairro, mas é frequentemente instigado a fechar as portas, especialmente por seu filho, Pino (John Turturro), incomodado com a clientela afro-americana cada vez maior que povoa a região.

A tensão verbal escala para a violência física e explode quando policiais, ao apartar uma briga, enforcam até a morte Radio Raheem (Bill Nunn), diante dezenas de testemunhas. A atmosfera densa finalmente explode em violência quando as pessoas destroem a pizzaria, símbolo do racismo e da morte estúpida de Raheem.

"Faça a Coisa Certa" chegou aos cinemas com o medo do público branco de ver a revolta violenta na tela reproduzida no mundo real. Era a fachada de "civilidade" sendo arrancada de uma parcela racista da sociedade que projetou seus preconceitos em uma história fictícia. E que, por conta dessa mesma parcela, possibilita que policiais racistas matem unicamente pela cor da pele. O povo, aí sim, reage - seja na ficção, seja no noticiário, não importam as décadas entre um e outro.

DOMINGO SANGRENTO
(Bloody Sunday, Paul Greengrass, 2002)

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'Domingo Sangrento', de Paul Greengrass
Imagem: Paramount

Antes de redefinir o cinema de ação do século 21 com "A Supremacia Bourne" e "O Ultimato Bourne", o diretor Paul Greengrass acendeu um pavio realista em 2002 com "Domingo Sangrento", dramatização do massacre promovido pelo exército britânico que abriu foto em um protesto pelos direitos civis na Irlanda em 30 de janeiro de 1972.

E eu uso o termo "dramatização" de forma genérica. Greengrass aplicou um estilo de guerrilha, filmando sem luz artificial e com câmeras na mão todo o tempo, para atingir o máximo de autenticidade. O filme segue o político Ivan Cooper (John Nesbit), membro do parlamento da Irlanda do Norte que organizou o protesto em Derry, segunda maior cidade do país.

O que era uma marcha pacífica tornou-se um banho de sangue quando tropas britânicas abriram fogo, matando treze civis e ferindo mais um, que veio a morrer meses depois. Não houve conflito: as mortes ocorreram quando as pessoas, em sua maioria jovens, fugiam dos soldados ou ajudavam os feridos. O grupo terrorista Ira intensificou suas ações após os eventos de janeiro de 1972.

O "domingo sangrento" teve consequências que reverberaram por anos - em especial no julgamento dos soldados, muitos reafirmando a legitimidade de suas ações como um "ato de guerra". O filme de Greengrass não aborda esse desdobramento, encerrando a narrativa como um baque surdo após a tragédia. O clima marcial de "Sunday Bloody Sunday", que o U2 lançou em 1983, preenche os créditos como o epílogo perfeito para uma história feia e brutal. E que sempre pode se repetir.

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OS SONHADORES
(The Dreamers, Bernardo Bertolucci, 2003)

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'Os Sonhadores', de Bernardo Bertolucci
Imagem: Fox

"Os Sonhadores" aborda duas revoluções. Nas ruas de Paris em maio de 1968, estudantes protestavam contra o capitalismo, consumismo, imperialismo americano e as instituições tradicionais. A agitação civil culminou em greves, ocupação de fábricas e universidades, além do confronto com a polícia. Depois de sete semanas, um estado de anarquia quase levou a França à guerra civil.

Bernardo Bertolucci, entretanto, volta suas lentes para a segunda revolução, que ocorre em um casarão parisiense em que os irmãos Theo (Louis Garrel) e Isabelle (Eva Green) "adotam" um estudante americano, Matthew (Michael Pitt). O trio aos poucos entrega-se à uma exploração dos sentidos, sem inibições, perdendo sua inocência em um idílio hedonista que será dilacerado pela realidade nas ruas.

O diretor de "O Último Tango em Paris" e "O Último Imperador" pesou a mão em sua auto-indulgência, abandonando a sutileza ao traçar um paralelo entre as duas rupturas retratadas no filme. Ainda assim, "Os Sonhadores" serve como um alerta para a realidade da revolução, que alcança até os que dela se encondem em sua bolha.

FILHOS DA ESPERANÇA
(Children of Men, Alfonso Cuarón, 2006)

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'Filhos da Esperança', de Alfonso Cuarón
Imagem: Universal

Na fantástica distopia de Alfonso Cuarón, o rompimento do tecido das instituições, que pode culminar em caos urbano irrefreável, já é realidade. O gatilho é a incapacidade de a humanidade gerar filhos: como uma geração infértil encararia o equilíbrio precário no mundo ao saber que é a última a habitar o planeta?

A resposta é traduzida em uma guerra civil que toma um país sem esperança, habitado por um ex-ativista (Clive Owen) que é coagido a levar uma jovem a um santuário científico no mar. A surpresa representa esperança e o temor da mudança: ela está inexplicavelmente grávida.

Cuarón retrata este futuro sombrio com realismo desconcertante, em especial quando forças do governo e guerrilheiros rebeldes entram em combate nas ruínas da civilização - e nos perguntamos pelo que, exatamente, eles estão brigando. "Filhos da Esperança" é ambientado em 2027. Estamos quase lá.

SELMA: UMA LUTA PELA IGUALDADE
(Selma, Ava DuVernay, 2014)

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'Selma: Uma Luta Pela Igualdade', de Ava DuVernay
Imagem: Disney

Seria quase impossível encapsular todas as entrelinhas da vida do líder dos direitos civis Martin Luther King em um único filme. A diretora Ava DuVernay tomou a melhor decisão possível ao concentrar-se em um recorte. "Selma" retrata a luta do ativista em garantir direito iguais de voto em um Estados Unidos chacoalhado pela violência racial.

O ato simbólico para garantir os direitos para a população afro-americana foi a marcha épica de cinco dias de Selma a Montgomery, no estado do Alabama, uma campanha que durou três meses em 1965 e foi marcada por injustiça, ataques raciais e violência desmedida - o que jamais abalou MLK em sua filosofia não combativa.

No papel de Martin Luther King, David Oyelowo encontra o equilíbrio perfeito entre a figura pública messiânica e o homem que busca força em suas dúvidas, que dobra mas não quebra ante a pressão dos conservadores e racistas, e que por fim conseguiu mudar o mundo.

Por sinal, não é nem de longe o único trabalho da diretora que aborda temas raciais caros à comunidade afro-americana - e também ao resto do mundo: Ava DuVernay também assina a série "Olhos Que Condenam", que também se volta ao mundo real para desnudar o racismo que persiste no poder público americano.

ROGUE ONE: UMA HISTÓRIA STAR WARS
(Rogue One: A Star Wars Story, Gareth Edwards, 2016)

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'Rogue One: Uma História Star Wars', de Gareth Edwards
Imagem: LucasFilm/Disney

A cultura pop não cansa de dar exemplos de histórias com forças revolucionárias dispostas a colocar a própria vida na linha de fogo contra o fascismo e em nome da liberdade. "Star Wars" foi criado nessa premissa, mas a "guerra" chegou com força na galáxia muito distante em "Rogue One".

Longe da saga de tons shakespearianos da família Skywalker, o filme de Gareth Edwards abraça a guerrilha urbana em um ambiente fantástico. Um grupo de rebeldes precisa cumprir uma missão aparentemente sem retorno: infiltrar-se no coração do inimigo para roubar planos de uma estação de combate imbatível, o que significaria o triunfo de um estado totalitário.

"Rogue One" é coalhado de símbolos e arquétipos revolucionários, dos combatentes mais violentos que acreditam em ações violentas para demolir as fundações do Estado aos guerreiros que enfrentam forças fascistas com o brilho no olhar de uma ideologia que significa liberdade.

Claro, tem aquela cena em que Darth Vader mói um grupo de soldados rebeldes com a Força e seu sabre de luz. Mas "Rogue One" é mais forte quando concentra-se na luta de poucos para garantir a sobrevivência de muitos. Pergunto, eu, perplexo: como é que ainda existe fãs de cultura pop que não abraçam o combate ao fascismo e à truculência, preferindo o discurso do ódio e da ignorância?

CORINGA
(Joker, Todd Phillips, 2019)

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'Coringa', de Todd Phillips
Imagem: Warner

O cinema não cansa de surpreender. Afinal, quem poderia imaginar que "Coringa" trocaria o combate de décadas com o Batman pelo pavio que acenderia uma revolução? O maior trunfo do filme de Todd Philips é justamente usar a iconografia do personagem da DC para contar uma história sobre o povo tomando o poder nas ruas. Se necessário, à força.

O paralelo que ele faz da opressão social em Gotham City com a trajetória do comediante Arthur Fleck reflete uma sociedade que ignora a igualdade e bate em quem já está no chão. Quando o oprimido reage, o resultado é um pesadelo urbano traduzido em revolta e violência.

Do modo como a trama de "Coringa" é disposta, fica difícil discordar, mesmo quando o protagonista passa de vítima mentalmente perturbada a maníaco homicida. Crime e revolução caminham juntos, uma jornada que Philips lapidou na tradição de filmes como "Taxi Driver", "Rede de Intrigas", "Um Estranho no Ninho" e, por que não, "Batman - O Cavaleiro das Trevas".

É uma narrativa que precisa de Joaquin Phoenix para funcionar. O ator entendeu o que move o Coringa, e não se empalideceu a descer no abismo que é a mente de Arthur Fleck, que encontra na loucura refletida na violência sua resposta a uma sociedade que não alivia o ataque. É ficção, claro. Mas até quando?