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Se minha aldeia retrata o mundo, constato: a lamúria passou, há luta

"O Castelo", de Jorge Méndez Blake. - Acervo
"O Castelo", de Jorge Méndez Blake. Imagem: Acervo

Colunista do UOL

02/06/2020 09h31

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Adriel Oliveira, garotinho de doze anos que fala sobre livros no Instagram, denunciou o episódio de racismo. Algum babaca lhe escreveu: "Porco gordo. Eu achava que preto era pra ta cavando mina, não lendo. Você foi criado pra ser pobre e preto". Sim, é um relincho que nos faz desacreditar na humanidade. Impossível não pensar na correlação entre o ataque a Adriel e o assassinato de João Pedro e diversos outros garotos negros em favelas brasileiras, matança promovida pelo Estado com o seu braço armado, a polícia. Pontas do racismo estrutural.

No meio editorial, a pindaíba. Grandes cadeias de livrarias ruem de vez, as pequenas tentam sobreviver à pandemia, enquanto a gigante multinacional segue voraz, engolindo quase tudo o que aparece na frente. Editoras contabilizam quedas nas vendas que oscilam entre significativas e drásticas. Sem eventos e com o mercado minguado, escritores bolam formas de atrair alguma grana para o bolso. Toda cadeia já notou: não dá para contar com auxílios papagaiados pelo governo.

Em Brasília, aliás, a secretaria de Cultura segue o padrão de Bolsonaro: uma zona completa. Um secretário faz vídeo de inspiração nazista. Cai. Uma secretária enaltece o pum do palhaço e dança enquanto minimiza torturas e a ditadura. Com essa bizarrice, ganha pontos com o chefe, fã do que há de pior na humanidade. Apesar da demonstração de lealdade, a secretária também cai. É preciso agradar um astrólogo tresloucado cada vez mais exigente em suas extravagâncias autoritárias. Para os artistas e para a cultura mesmo, ninguém dá bola.

Me chega uma notícia triste. Mais uma. Estão fechando as portas do Sesc Corumbá. Poucas vezes estive num lugar com leitores tão atentos e tão dedicados a discutir literatura e a pensar em formas de promover e disseminar a arte. Numa cidade fronteiriça, distante das capitais e com raríssimas opções de cultura, o espaço fará uma falta danada.

Enquanto isso, no prêmio mais tradicional do nosso mercado editorial... Pedro Almeida, então curador do Jabuti, fez um post em sua página do Facebook com informações deturpadas sobre a pandemia e questionando a seriedade do momento em que estamos metidos. O meio editorial protestou. Pedro pediu desculpas a quem se sentiu ofendido e assumiu o erro com os dados. A Câmara Brasileira do Livro, responsável pelo prêmio, escreveu uma nota de repúdio e manteve o então curador no cargo.

Então o meio editorial seguiu em protesto. Um abaixo-assinado com milhares de assinaturas e uma carta escrita por um coletivo de mulheres profissionais do livro chamaram a atenção, resultados mais visíveis de articulações e muitas manifestações nas redes sociais. Teve até vencedor do Jabuti prometendo devolver o seu troféu caso a CBL não revisse a posição sobre a curadoria. Quem reviu a posição foi Pedro Almeida. Pediu renúncia e a Câmara aceitou. Temos um ponto de inflexão. E não só um.

Porque Adriel sofreu o ataque racista, mas também recebeu milhares de apoios (seu canal explodiu em audiência; enquanto escrevo, o "Livros do Drill" já tem mais de 750 mil seguidores). No mundo dos livros, editoras se organizam, unem-se a pequenas livrarias e começam a forjar caminhos para sobreviver ao momento; dados divulgados há pouco pelo Sindicado Nacional dos Editores de Livros apontam que maio já foi um mês menos pavoroso do que abril. A literatura seguirá, disso não há dúvidas. Em Corumbá, o povo se organiza para tentar reverter a decisão de fechamento do Sesc, entidade que tantas vezes fez o papel que caberia ao ministério ou à secretaria de Cultura, especialmente na base. E lá em Brasília logo as coisas hão de mudar de vez, como as ruas começam a indicar. A união se delineia. Atos simbólicos e práticos pipocam por todos os cantos. A fase de lamúria passou. Há luta.

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