Leitor raro, há cinco anos que sua morte desafia o tempo numa rede social
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"''Conheci'' o Arsênio hoje através de uma resenha sua, e, diga-se de passagem: que resenha! E agora tomo conhecimento de que ele se foi. Estranho, mas estou triste também, e olha que o 'conheci' há menos de 30 minutos", vemos em um recado. "Estou relendo uma cópia de 'Minha Vida', do Tchekhov, que o Arsênio repassou para mim... Cheia de anotações dele. Cara, que falta faz. Um amigo, um irmão. Jamais esquecido", encontramos em outro. "Saudades, grande!", resume um terceiro, o mais recente, postado nesta semana.
Lidas assim, as mensagens parecem destinadas a alguém que se foi há pouco. Não é o caso. Arsênio Meira partiu há cinco anos. Desde então, a página que alimentava no Skoob, rede social dedicada aos livros, jamais deixou de receber afagos homenageando esse grande leitor. Por lá, Arsênio compartilhava suas impressões sobre "Histórias de Cronópios e de Famas", de Julio Cortázar, "Esta Valsa é Minha", de Zelda Fitzgerald, "Lavoura Arcaica", de Raduan Nassar, e outros 275 livros - no total, indicava 1770 leituras feitas, nove em andamento, 18 abandonadas e 1.199 na lista de desejos.
No universo veloz da internet, com ascensões e esquecimentos relâmpagos, não é comum alguém se destacar em uma rede social e seguir lembrado tanto tempo após a morte. Isso chamou a atenção de Matheus Peleteiro, escritor que compartilhou comigo a história de Arsênio. "Nunca o conheci, nem troquei palavras com ele, mas pude ler diversas das suas resenhas antes de escolher leituras. Quando fui em seu perfil para adicioná-lo, tive a notícia de que falecera há uma semana. Houve uma comoção generalizada nos seus comentários e até no meu feed vi lamentos a respeito", escreveu-me Matheus. Ele também apontou como essa comoção ainda ecoa.
Resolvi tentar descobrir um pouco mais sobre esse leitor raro. Fora a família, o Arsênio tinha um trabalho e duas paixões: se mantinha com a advocacia, mas amava o Sport Recife e a literatura, especialmente a poesia. Formado em Direito como o pai, transparecia o quanto desejava cursar Letras, algo que andava no seu horizonte. Dentre os poetas preferidos, nomes como Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes.
Com um conhecimento gigantesco sobre poesia, garantem que falava de bate-pronto sobre qualquer nome que surgisse no meio de uma conversa. Fosse nos café de alguma livraria (onde muitas vezes esperava os camaradas com livros incontornáveis para dar de presente), fosse durante uma cerveja em sua casa ou mesmo numa troca de e-mails, voltava ao futebol para analisar certas obras. Canelada era uma metáfora para partes problemáticas de poemas, enquanto um vermelho antes de entrar em campo significava que alguma peça sequer deveria fazer parte de certo livro.
O trio de amigos
Dos amigos das letras de Arsênio, dois eram especiais: os jornalistas e escritores Samarone Lima e Inácio França. Conversei algumas vezes com ambos; foram fundamentais para este perfil. "Meu amigo que não suportava ver filmes na televisão para não desperdiçar duas horas que podiam ser usadas com leitura... Meu amigo rubro-negro que, quando o time dele não estava em campo, torcia pelo Santa Cruz só para que eu e Samarone ficássemos felizes (e nós dois, mesquinhos demais, nunca retribuímos por absoluta falta de generosidade)", recordou Inácio em um texto.
Já Samarone, de certa forma, deve ao amigo a própria carreira como poeta. Arsênio que o convenceu a deixar a desconfiança de lado, tomar coragem e parar de publicar seus versos apenas num blog obscuro. Para ajudar a elaborar livros coesos, sem grandes oscilações de qualidade, conversou, mostrou as virtudes e os eventuais problemas de Samarone, que em 2012 lançou "A Praça Azul & Tempo de Vidro" e, dois anos depois, "O Aquário Desenterrado". Este lhe valeu o Prêmio Brasília de Literatura e o Prêmio Alphonsus de Guimarães da Biblioteca Nacional.
Em 2016, Samarone dedicou "A Invenção do Deserto" a Arsênio, "um irmão que a vida me deu e levou". Nos versos de "Um Poema, um Mundo", lemos: "Um poema:/ Ali nascia o mundo// Um poeta/ E todas as lástimas/ Eram sinais de Deus// O homem que lia poesia/ Como quem decorava ar puro// Por um amigo/ Dava as mãos, os sapatos,/ Os cabelos// 'Preciso de um irmão'/ E ele removia todo entulho/ De qualquer espera// Arsênio./ O menino que brincava de viver/ Na Praça da Bandeira// Com a fidelidade aparada, polida/ Sem armas, escudos, remédios".
A poesia segundo Arsênio
Esse amor de Arsênio pela poesia vinha da infância. A mãe que lhe apresentou nomes como Vinícius de Moraes, Ferreira Gullar e Maiakovski. Até escreveu um verso ou outro, mas dizia que uma das maiores contribuições dadas à literatura foi queimar os poemas que burilou na juventude. Acreditava ser melhor com o livro do que com a caneta em mãos. Em um texto escrito no final de 2010, registrou suas convicções e um pouco de sua paixão pelas letras:
"A Poesia não é impertinente ou para poucos. Sua mensagem, inaugurada pelo gênio de Camões em nossa língua mãe, encontrou em Dante momentos sublimes e até hoje assistimos a sua luta para permanecer viva e resistente a toda sorte de intempéries, não raro provocadas pelos desprezíveis alpinistas literários. É curioso ver como se repetem indefinidamente certos clichês a respeito de alguns temas, e não é sem um sorriso, que nos vemos retratados hoje, fotográfica ou psicologicamente, pelo que já não somos há muito", cunhou, para depois prosseguir com certa provocação:
"Friso que não é a cultura que faz o poeta. Pode até prejudicá-lo, penso. É uma contradição, mas explico: o prejuízo nasce porque o estado inicial de candura, que é um elemento fundamental do dom poético, pode fazer-se prisioneiro perpétuo das obras e influências alheias. Dessa equação, proliferam equívocos mil. A cultura amealhada por um Poeta há que ter um só objetivo: transformar a sua inata sensibilidade em cores e versos nunca vistos ou lidos, sob pena da diminuição (fatal) das suas virtudes líricas. E não há cultura sem tempo. A Poesia é a sedimentação do Tempo, e nada se sedimenta sem lentidão. Reconheço que o tempo pode em nada acrescer, por si só, os dons".
Final de livro
Em casa, também fazia sucesso com suas sugestões de leitura. Isabelly, companheira ao longo da vida e com quem teve José Vicente, o filho, conta que Arsênio lhe apresentou "várias biografias maravilhosas", mostrando que o leitor também tinha olhos para a não ficção. Isabelly corrobora as palavras de Samarone e Inácio. Ele "era um leitor nato. Falava dos livros com tanto encantamento que contagiava quem estivesse ao seu lado. Quando comentava da vida de algum poeta, em especial de Pessoa e Drummond, parecia que tinha vivido com eles, tamanha a riqueza de detalhes que transmitia".
Pouco antes de morrer, Arsênio havia postado uma mensagem no Skoob com algumas impressões da leitura da vez: "Grande Sertões: Veredas". "Esse romance não pode acabar. É isso", escreveu na ocasião, após citar um trecho da página 253. É sobretudo nesse post que colegas de rede seguem com as homenagens.
Tudo leva a crer que o clássico de Guimarães Rosa foi o seu último livro. Aos 40 anos, talvez estivesse descobrindo ou pensando sobre algum segredo de Diadorim quando veio o infarto fulminante. Logo depois, Inácio postou em seu Facebook: "Um amigo desses vai me fazer tanta falta num mundo em que há tantos babacas tentando me convencer de que 'o que importa mesmo nessa vida é ganhar dinheiro'". É de um simbolismo enorme: Arsênio Meira morreu em sua biblioteca.
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