A vida muda num instante: os milhares de mortos e as formas de viver o luto
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Numa manhã de Natal que Quintana, única filha de Joan Didion e John Gregory, passou mal. Pensava que era uma gripe um pouco mais forte. Ao chegar no hospital, porém, piorou. Um choque séptico derrubou a moça, mantida inconsciente no centro de tratamento intensivo durante cinco dias.
As coisas melhoravam para Quintana no dia 30 de dezembro. Joan Didion acendera a lareira e oferecera um drinque a John antes de começar a preparar o jantar. Sentaram-se à mesa iluminada por velas. Papeavam sobre algo qualquer quando o homem se calou. Joan levantou os olhos e viu o marido se curvando para frente. Achou que era uma brincadeira, uma tentativa de amenizar aquela fase tão difícil. Não era.
"A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina. A questão da autopiedade", escreve Joan no início de "O Ano do Pensamento Mágico". Jornalista responsável por reportagens memoráveis e escritora consagrada, Joan é um dos maiores nomes vivos da literatura dos Estados Unidos. Após perder o marido, decidiu investigar como o luto se manifesta e constituí. Sem qualquer tipo da autopiedade mencionada nas linhas inaugurais do trabalho, entrega ao leitor um ensaio no qual parte do próprio drama para entender como outras pessoas, culturas e povos, no caso de tragédias coletivas, lidam com a morte.
"O Ano do Pensamento Mágico" foi publicado originalmente em 2005, dois anos depois da partida de John, e se transformou num clássico do ensaio pessoal. Leitura indispensável, ganhou involuntária e indesejável continuação seis anos depois. Em "Blue Nights", Joan, ao seu modo rigoroso e crítico, investiga a maternidade e o seu segundo luto. Quintana, a filha que adoecera na noite de Natal, morreu enquanto a escritora finalizava "O Ano do Pensamento Mágico".
São livros pesados, que possibilitam ao leitor sofrer e, quem sabe, crescer com o modo como Didion encara as perdas. Ambos saíram por aqui pela HarperCollins em 2018, com traduções de Marina Vargas e Ana Carolina Mesquita. Ainda de Joan, também é precioso o documentário "The Center Will Not Hold", disponível na Netflix. Lembro da escritora por conta do momento em que estamos metidos. Com centenas de mortos diários, milhares ao longo de cada semana, corpos se acumulando em hospitais, cemitérios não dando conta de enterrar tantos cadáveres e gente impedida de se despedir de seus pais, mães, filhos, tios, avós e amigos, dialogar e pensar sobre a morte e sobre as maneiras de lidar com a morte é essencial. A literatura é um meio para tal.
O tema recebe um tratamento bem original (tanto na forma fragmentada e ocasionalmente experimental quanto na abordagem, uma honesta busca de reconstrução do mundo pós-perda) em "O Pai da Menina Morta" (Todavia), de Tiago Ferro, vencedor do Prêmio Jabuti do ano passado na categoria Romance. Na obra, baseada num processo vivenciado pelo próprio autor, um homem busca compreender e estruturar seu mundo depois da súbita morte da filha de oito anos. Futebol, música e sexo provocam sensações e se misturam a sentimentos, memórias e situações cotidianas numa narrativa que não dá espaço para a autocomiseração; rigor e resiliência são elementos essenciais em bons livros do tipo. Não que seja um processo fácil, óbvio. "O fim do mundo é doce. Encerram-se os lutos. Todos eles de uma vez. Ninguém morre. Nunca mais", lemos num dos momentos mais bonitos do livro.
A morte (ou a suposta morte) de uma criança também é o ponto de partida para "Luto", do guatemalteco Eduardo Halfon, publicado por aqui pela Mundaréu em tradução de Lui Fagundes. O romance é uma espécie de quebra-cabeças no qual um homem busca encaixar peças de sua infância. A mais importante dessas peças é o mistério sobre o irmão de seu pai, que teria morrido afogado aos cinco anos de idade no lago Amatitlán. Verdades infundadas, memórias falhas, conflitos familiares, segredos e perdas coletivas são alguns dos ingredientes da história que mostra como feridas jamais cicatrizadas acabam voltando a sangrar em algum momento da vida. O trecho do livro em que o narrador repassa uma série de crianças afogadas é de força e beleza singulares.
Há muito mais sobre o luto na literatura. Boris Fausto, por exemplo, tratou da morte da esposa no diário "O Brilho do Bronze" (Cosac Naify). Já Ricardo Lísias, em "O Céu dos Suicidas" (Alfaguara), romance incisivo e de passagens memoráveis, muitas marcadas pela incompreensão e falta de empatia, investigou o suicídio não pela perspectiva daquele que se vai, mas pela reação e pela busca de explicações daqueles que ficam. E já que toquei no assunto... Nesse cenário de pessoas psicologicamente fragilizadas, num Brasil em que um Flávio Migliaccio abrevia a existência por não suportar o que o país está virando e um Lima Duarte diz entender a decisão do colega, o suicídio é outro tema que precisa ser encarado com urgência pela sociedade.
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