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Lina Meruane, o isolamento palestino e nosso futuro incerto sobre viagens

Arte do livro "Tornar-se Palestina". - Paula Albuquerque/ Relicário.
Arte do livro "Tornar-se Palestina". Imagem: Paula Albuquerque/ Relicário.

Colunista do UOL

08/05/2020 09h44

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Uma das coisas que mais me motivam na vida é namorar e programar viagens (e, quando possível, viajar, claro).

Xavecava uma para o final de abril, mas, por motivos alheios, o romance não vingou. Pensava numa outra para julho, mais uma para dezembro e uma terceira para o meio do ano que vem. Conseguiria transformar tudo em realidade? Não; a carteira não permite. Mas sonhar com andanças por aí me faz bem.

Então veio o corona, a pandemia e a quarentena. Aeroportos fechados, fronteiras fechadas, voos tão escassos quanto títulos do meu São Paulo nos últimos anos....

A realidade global não deverá mudar tão cedo. Não creio que todas as fronteiras voltarão a ser como eram há poucos meses; certamente algumas nações aproveitarão a pandemia para dificultar as coisas para quem deseja entrar no país. Turistas normalmente não se preocupam com isso, entretanto, mesmo estes precisarão esperar bastante para que haja alguma normalidade, mesmo que seja o tal novo normal.

Pela condução da pandemia por aqui, receio que para os viajantes brasileiros o drama durará ainda mais tempo. Com o descaso presidencial e a falta de controle e tática para lidar com a pandemia, pode ser que estejamos no caminho certo para nos tornarmos aberrações globais, potenciais bombas de vírus que serão evitadas por qualquer país minimamente sério - até o Trump, que passa longe de ser razoável, sinalizou nesse sentido. Pelo rastejar das coisas, o passaporte brasileiro poderá ser um amontoado de papel sem valor algum quando as fronteiras reabrirem.

Lina Meruane

Bem antes de qualquer traço da pandemia, a chilena Lina Meruane decidiu viajar para um país que sofre com o isolamento. É um isolamento de razões bem mais complexas e com desdobramentos muitíssimo mais graves, então nem passa pela minha cabeça comparar a eventual situação do Brasil no futuro com o que temos há décadas naquela região do Oriente Médio. Falo da Palestina. A escritora rumou para lá em busca de tentar entender melhor as raízes de sua família e de muitos conterrâneos - fora a própria Palestina, o Chile tem a maior comunidade de palestinos do mundo. Não custa lembrar: o território palestino, hoje, é dividido em duas partes (Faixa de Gaza e Cisjordânia) e toda a relação do país com o resto do mundo está sujeita aos caprichos de Israel (com uma forcinha do Egito, é verdade).

Gosto da escrita da Lina. O romance "Sangue no Olho" (Cosac Naify) é angustiante. O manifesto "Contra os Filhos" (Todavia) é de uma potência, uma força que beira a raiva, rara de se encontrar em livros sobre a maternidade moderna. Em "Tornar-se Palestina" (Relicário), mistura de ensaio com narrativa de viagem, Lina mais uma vez não decepciona. Ainda que o início seja um pouco arrastado - na primeira parte, certas cenas cotidianas são longas demais, enquanto outras poderiam ter sido descartadas -, a partir do momento em que a escritora pega o avião e parte para Israel, temos algo valioso.

"Depois de alguns dias, ao menor sinal, mesmo em circunstâncias desnecessárias, abrirei minha bolsa para qualquer desconhecido parado casualmente numa porta. As sucessivas revistas logo deixam de me assustar, mas a constante presença militar me apavora. É ainda mais intensa aqui do que nos tempos da ditadura chilena: os nossos milicos andavam armados até os dentes, mas não se misturavam com os cidadãos. Pareciam uma anomalia, uma raridade destinada a desaparecer. Aqui, são aceitos como uma necessidade de que poucos querem prescindir. Apenas com sua energia adolescente e seus coturnos, esses fardados sugerem que cada centímetro é um potencial campo de batalha", relata sobre Jerusalém.

Capa de "Tornar-se Palestina". - Divulgação. - Divulgação.
Imagem: Divulgação.
Palestina, enfim

Já na Palestina, Lina encontra o que previa: uma nação constantemente acossada. São muitas as situações em que a arbitrariedade e a injustiça podem fazer o leitor fechar os olhos para tentar controlar a raiva. Em cidades onde há dezenas de milhares de palestinos e apenas algumas centenas de israelenses que vivem em assentamentos ilegais, são estes que mandam no pedaço. "No caso hipotético de um colono e um palestino atirarem pedras um no outro, o colono responderia perante a lei civil, enquanto o palestino seria julgado como terrorista", relata Lina.

Entre esses colonos ilegais estão judeus que dirigem carros nos quais ostentam adesivos com frases como: "Eu matei um árabe, e você?". E se também há violência por parte dos palestinos, a chilena nos recorda que eventuais pedradas podem ser respondidas com mísseis, algo tão desproporcional e assimétrico que só pode mesmo ser chamado de massacre. "Há cinco crianças-palestinas condenadas à prisão perpétua por apedrejar o carro de um colono israelense em territórios lotados de assentamentos ilegais", denuncia.

Depois de ver tudo o que viu, Lina também se debruça sobre textos e conferências para analisar como outros refletem e discutem a questão. Cria um debate cruzando o que vivenciou com o que intelectuais como Amos Oz e David Grossman pensam sobre o tema. É uma escolha elogiável, faz com que a viagem não termine no momento em que Lina pega o avião e deixa o Oriente Médio.

Enquanto escrevo, invariavelmente me pergunto: por quanto tempo mais precisarei viajar por meio de experiências alheias? Fui longe. E repito: não comparo o hipotético futuro do Brasil com o que se passa há muitas décadas na Palestina, não é isso. Aqui, talvez paguemos pelas nossas escolhas; lá, são isolados, confinados e massacrados com injustiças presentes e sacanagens históricas. Mas dica é válida: o livro de Lina merece a leitura. E que eu esteja errado sobre o brasileiro como párea global preso em suas fronteiras. A Palestina é um lugar que, em meus devaneios, já sonhei visitar.

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