Topo

André Barcinski

Adeus a um grande jornalista musical

O escritor Nick Tosches em foto de maio de 1997 - Louis MONIER/Gamma-Rapho via Getty Images
O escritor Nick Tosches em foto de maio de 1997 Imagem: Louis MONIER/Gamma-Rapho via Getty Images

Colunista do UOL

26/05/2020 06h00

Resumo da notícia

  • Autor de livros antológicos sobre Jerry Lee Lewis, Dean Martin, rock e música country, Nick Tosches foi uma lenda do jornalismo musical

Este blog retornou à atividade em fevereiro, depois de quase dois anos em hibernação. Durante esse hiato, muita coisa importante aconteceu, incluindo a morte de um dos jornalistas musicais mais talentosos de todos os tempos: Nick Tosches, que morreu em 20 de outubro de 2019, três dias antes de completar 70 anos.

Tosches escreveu três biografias que estão entre as melhores que conheço: "Hellfire", sobre Jerry Lee Lewis, "Dino - Living High in the Dirty Business of Dreams", sobre Dean Martin, e "The Devil and Sonny Liston" sobre o boxeador Sonny Liston.

Além disso, deixou vários volumes sobre a história do rock e da música country, como o indispensável "Unsung Heroes of Rock'n'Roll", lançado em 1984 (e reeditado duas vezes depois, além de ter sido copiado incontáveis vezes por aí), com perfis de pioneiros do rock pré-Elvis como Jesse Stone, Big Joe Turner, Louis Jordan, Louis Prima e muitos outros.

Outra obra marcante foi "Country: The Twisted Roots of Rock'n'Roll", sobre a origem sombria e violenta da música country e sua influência na criação do rock.

Tosches tem dois livros curtos lançados no Brasil: "Criaturas Flamejantes" e "A Última Casa de Ópio", ambos sensacionais.

Será que alguém já escreveu tão bem sobre rock quanto Nick Tosches? Saca só:

"De uma vez por todas: o rock está morto. Mais morto que os anos 80. Mais morto que Liberace. Mais morto que o pênis papal. Morto. Bill Haley, o primeiro astro branco do rock, surgiu, virou merda e se foi, e isso antes do verão de 1954. Em outras palavras: o ciclo estava completo, a besta do rock'n'roll estava domada para o circo das massas, antes que Elvis - outro filho da puta morto - surgisse."

Ou:

"Estamos nos anos 90, o que quer que isso signifique, e essa merda de cultura do rock'n'roll ainda nos atormenta. Olhe bem para a careca de Paul Shafer. Isso é o rock'n'roll hoje: uma banda de bar mitzvah liderada por um careca cretino (olhe debaixo do chapéu de Dion e você encontrará algo quase tão ruim: religião). É muzak no elevador para a meia-idade."

Ou ainda, meu trecho favorito:

"'We Are the World' não é rock'n'roll. É o som da revista 'Time' chorando. Talvez o rock de verdade seja impossível, numa época de sexo seguro, quando a juventude da América está mais interessada no venal do que no venéreo."

Em 2011, fiz uma entrevista com Nick Tosches para a "Folha". Aqui vai a íntegra:

Nick Tosches é uma instituição nova-iorquina. Há décadas almoça no mesmo restaurante, o Da Silvano's, no West Village, famoso por sua cozinha toscana. Diz ter saudades do tempo em que a cidade não parecia uma filial da Disneylândia. Fuma sem parar. É mal humorado e ácido. Não é à toa que trabalhou caçando cobras para um serpentário.

Tosches é, assumidamente, um personagem de outra era: "A cultura moderna me deprime", diz o autor e jornalista, nascido em 1949 em New Jersey, de uma família de origem albanesa e italiana.

Nos anos 70, Tosches fez parte de uma brilhante geração de críticos musicais - Lester Bangs, Richard Meltzer - que se destacava com textos livres e apaixonados em revistas norte-americanas como "Creem" e "Fusion".

O estilo da turma, altamente influenciado pelo "new journalism" de Capote, Mailer e Hunter Thompson - Tosches cita ainda Henry Miller, Christopher Marlowe e Borges como grandes inspirações - misturava o idioma das ruas com a aspereza de um Hubert Selby e a liberdade de um Faulkner.

Nos últimos 40 anos, Tosches colaborou com publicações como "Esquire", "Vanity Fair" e "Rolling Stone". Mas ficou realmente conhecido por seus livros.

No fim dos anos 70 e início dos 80, lançou dois volumes que ajudaram a resgatar inúmeros artistas esquecidos: "Country: The Twisted Roots of Rock and Roll" e "Unsung Heroes of Rock'n'Roll: The Birth of Rock in the Wild Years Before Elvis".

Nos livros, Tosches conta a história do rock'n'roll pré-Elvis, período que considera a fase de verdadeira revolução do rock, antes de ser cooptado pela indústria cultural. "Naquela época não existia apenas o livre mercado, exista a total liberdade", disse o autor à "Salon". "Você podia mentir, roubar, enganar e usar trabalho escravo. Eles só não sabiam o que estavam vendendo ou para quem. Era incrível: muita música fantástica surgiu no processo."

A tese central dos livros era a de que o rock verdadeiro e primitivo, aquele nascido dos conflitos raciais e sociais do pós-guerra e inicialmente escorraçado pela sociedade americana, já estava morto e enterrado quando Elvis gravou seu primeiro compacto.

Combinando uma pesquisa rigorosa a um texto direto e raivoso como a música em questão, Tosches descobriu mérito em artistas praticamente ignorados pelo inconsciente coletivo e resgatou nomes como Big Joe Turner, Screamin' Jay Hawkins e Louis Jordan. Os livros viraram referência e ajudaram a reescrever a história do rock.

O autor conta que sempre foi obcecado por música, especialmente pelo lado mais obscuro e desconhecido do rock. Sua coleção é lendária e inclui compactos raríssimos dos anos 40 e 50.

"Quanto mais música em descobria em minhas pesquisas, mais música desconhecida me sentia tentado a procurar", disse Tosches, em entrevista exclusiva à Folha. "Naquele tempo, isso significava procurar em lugares obscuros por compactos raros de 45 e 78 rotações, assim como LPs a que ninguém no mundo parecia dar a menor importância. Era assim no tempo em que escrevi 'Unsung Heroes of Rock 'n' Roll'. Claro que, nos anos seguintes, boa parte da música sobre a qual eu escrevi acabou relançada em CD."

Desde então, o autor tornou-se uma espécie de arquivista das histórias de rebeldes e iconoclastas. "A cultura moderna é uma coisa morta e sufocante. Aqueles que rebelam contra ela são as verdadeiras forças da vida e da liberdade. Penso neles mais como pessoas de verdade do que como rebeldes. Aqueles que tentam ser diferentes não me interessam. Me interssam os que são naturalmente diferentes."

Em 1982, Tosches lançou "Hellfire", biografia do músico Jerry Lee Lewis. O livro é seu "Coração das Trevas", um mergulho ao inferno de um artista tão genial quanto atormentado. A revista Rolling Stone cravou: "É a melhor biografia de rock jamais escrita". E o cultuado autor e jornalista Greil Marcus disse: "Cedo ou tarde, esse livro será reconhecido como um clássico americano."

Nos anos seguintes, Tosches continuou sua jornada pelos subterrâneos da cultura norte-americana, lançando biografias polêmicas sobre Dean Martin ("Dino"), o mafioso Arnold Rothstein ("King of the Jews") e o boxeador Sonny Liston ("The Devil and Sonny Liston").

Neste último, defende a tese de que Liston era leão-de-chácara da Máfia e que entregou duas lutas lendárias contra Cassius Clay/Muhammad Ali.

Sobre seu trabalho como biógrafo, Tosches diz: "Os livros são chamados biografias, mas prefiro pensar neles como biografias de um mistério ou de um tempo. Todos os personagens que escolhi pesquisar são pessoas que, de uma maneira ou outra, me intrigaram. Sempre peno neles como personagens centrais na linha de frente de uma história maior."

No Brasil, apenas dois livros de Tosches foram lançados, ambos pela Conrad: "Criaturas Flamejantes", excerto de "Country: The Twisted Roots of Rock and Roll", e "A Última Casa de Ópio", em que narra sua saga em busca de... bem, uma casa de ópio.

Seja escrevendo sobre música ou sobre esportes, Tosches se diz, antes de tudo, um pesquisador. "Eu costumo me perder em minhas pesquisas. É uma forma de adiar o trabalho de escrever, mas é a única maneira de revelar o desconhecido."

O autor diz não confiar em pesquisas de Internet: "Sempre começo em arquivos de verdade. A Internet é uma coisa perigosa. Há muita informação boa ali. Mas há muita desinformação também. A Internet como fonte de pesquisa só corrobora, a cada dia, o que Rimbaud disse: 'Tudo que nos ensinaram é uma mentira'"

Tosches também tem um trabalho significativo de ficção. Lançou diversos romances e livros de poesia. Seu livro m(ais conhecido, "In the Hand of Dante", um delírio profano que narra sua saga em busca de um manuscrito de "A Divina Comédia", acaba de ser filmado por Julian Schnabel ("O Escafandro e a Borboleta"), com Johnny Depp no papel principal.

Escolado por anos e anos de frustrações com adaptações de seus livros para Hollywood (Martin Scorsese chegou a anunciar que dirigiria "Dino", com Tom Hanks no papel de Dean Martin, mas depois desistiu), Tosches se diz otimista com o novo filme: "Conheço Johnny bem o suficiente para saber que ele não vai f... meu livro."

O mais recente livro de Tosches é "Save the Last Dance for Satan", versão expandida de um artigo que fez para a "Vanity Fair" sobre a cena musical que gravitava no célebre Brill Building, em Nova York, no fim dos anos 50 e início dos 60.

O livro traz histórias sobre personagens desconhecidos e famosos, como Frank Sinatra e Alan Freed. "Os artistas são variados. A única coisa que têm em comum é o fato de terem vivido numa época em que a indústria da música estava muito ativa, quando o rock'n'roll estava numa fase inofensiva, mas o mercado por trás dele estava em sua fase mais selvagem e corrupta, um verdadeiro submundo."

E o presente? Não interessa a Nick Tosches?

Ele é categórico: "Não. A cultura atual não tem nada para me oferecer. Vivemos tempos escuros, tempos covardes. Abdiquei da modernidade."

O jornalismo musical, área em que transita há quatro décadas, está mais morto que Elvis: "Não acompanho. Me parece ter se tornado tão medíocre e sem alma quanto a própria música. É apenas mais um aspecto vagabundo de uma cultura sem nenhum valor."

Uma ótima semana a todos.

Visite meu site: andrebarcinski.com.br