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Para especialistas, versões em HQ são só "trailers" de clássicos literários

Luna D'Alama

Do UOL, em São Paulo

13/05/2015 08h29

Clássicos da literatura adaptados para quadrinhos, publicados com cada vez mais frequência, podem provocar debates tão acalorados quanto versões cinematográficas de livros consagrados. Segundo especialistas ouvidos pelo UOL, essas publicações no formato HQ são realmente uma forma mais rápida de entrar em contato com histórias originalmente contadas em centenas de páginas, mas são apenas uma espécie de “trailer” da obra literária.

“Tem gente que lê [uma adaptação em HQ] para ter uma ideia do que o livro se trata, quais são os momentos principais, os personagens, o enredo. E tem também o contrário. Há quem gosta tanto do original que quer ver como seria a atmosfera dele recriada visualmente. Mas não dá para achar que você conheceu 'Macbeth' porque leu Shakespeare em quadrinhos”, avalia o jornalista, crítico literário e colunista da "Folha de S.Paulo" Manuel da Costa Pinto.

Para ele, ler uma adaptação de um clássico da literatura em HQ causa uma sensação semelhante à de ver uma versão cinematográfica. “A função é a mesma. Se alguém usa isso como uma espécie de resumo, ou até para o vestibular, está fazendo bobagem, perdendo tempo”, diz. “Talvez as editoras oportunisticamente visem a essa necessidade, a esse desejo, mas isso não faz o menor sentido”, completa Costa Pinto.

Nelson Dutra

  • [Uma adaptação de clássico em HQ] É como pegar o Davi do Michelangelo e fazer uma miniatura. Por mais perfeita que seja, não substitui a magnitude dessa escultura renascentista

    Nelson Dutra, professor do colégio e cursinho Objetivo

Na opinião do professor de literatura e língua portuguesa Nelson Dutra, do colégio e cursinho pré-vestibular Objetivo, em São Paulo, os clássicos em HQ servem como um chamariz, mas jamais substituem o texto original e integral. “É como pegar o ‘Davi’ do Michelangelo e fazer uma miniatura. Por mais perfeita que seja, não substitui a magnitude dessa escultura renascentista”, destaca.

Dutra acrescenta que os quadrinhos são uma forma de entretenimento e lazer no mundo pós-moderno. “Eles não conseguem captar toda a arte, a técnica e as nuances dos autores. A complexidade de Machado de Assis, por exemplo, seu jogo de imagens. Teriam que criar desenhos em 3D para registrar toda a ambiguidade da Capitu, pois o texto do Machado é móvel, tem uma dimensão interior. Como você cristaliza um enigma? Precisaria de um Da Vinci ou Michelangelo para captá-lo”, analisa o professor, que mesmo assim já usou HQs em suas aulas.

Os especialistas ainda ressaltam que, na mudança de uma linguagem para outra, acaba-se criando uma obra totalmente independente, e nenhuma substitui a anterior. O professor de literatura brasileira Alcides Villaça, da Faculdade de Letras da USP, revela que não tem nada contra adaptar os clássicos para os quadrinhos, até porque as HQs não pretendem assumir o lugar dos textos originais. “O que me provoca indignação é a tal edição ‘facilitada’, em que se altera parcialmente o texto original para torná-lo mais ‘inteligível’ para o leitor despreparado, e, no final, tudo é apresentado com a assinatura, por exemplo, de um Machado de Assis, para quem cada palavra tinha um peso específico e necessário”, explica. “A própria linguagem das HQs é insubstituível", pondera.

Como materializar o imaginário

Para o crítico Manuel da Costa Pinto, em qualquer adaptação há perdas e ganhos, e o segredo de uma boa versão de clássico literário em HQ está na maneira como o quadrinista vai lidar com o texto original e a questão estética, para captar um pouco da atmosfera do livro. “A literatura é uma escola da ironia, da desconfiança. Ela ensina a perspectiva não literal das palavras, você deixa de acreditar na transparência da linguagem, de que ela nomeia algo tal como é. Toda linguagem tem uma instabilidade, e o grande desafio é pegar essa pedagogia da suspeita e usá-la nos quadrinhos, onde você também precisa literalizar e materializar o que acontece na obra original”, argumenta.

Costa Pinto cita uma adaptação em HQ de “Moby Dick”, de Herman Melville, que reproduz bem algumas passagens emblemáticas do livro. “Há os bares no porto, os preparativos para a viagem, o ambiente do navio, aquele clima de ansiedade e expectativa. Isso não tem ação, e como você transpõe esses elementos para a linguagem visual? A tentação do quadrinista é fazer sempre uma marcação temporal, mas muitas passagens têm uma simultaneidade e concentração de tempo, não são uma sequência cronológica”, diz.

De acordo com o crítico literário, é muito difícil transpor o tempo da narrativa, pois "na escrita, você pode ficar 150 páginas falando de uma única sensação, como faziam Clarice Lispector, Proust, Dostoiévski, Joyce”. E enfatiza: “Além disso, há a dimensão interior, vertical, das personagens, o que elas imaginam e sentem”.

Alcides Villaça

  • O que me provoca indignação é a tal edição 'facilitada', em que se altera parcialmente o texto original para torná-lo mais 'inteligível' para o leitor despreparado, e no final tudo é apresentado com a assinatura, por exemplo, de um Machado de Assis, para quem cada palavra tinha um peso específico e necessário

    Alcides Villaça, professor de literatura brasileira da Faculdade de Letras da USP

O especialista lembra ainda de personagens emblemáticos, que estão no imaginário popular, como é o caso da Capitu de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, que tem “olhos de ressaca” e “de cigana oblíqua e dissimulada”. Figuras como essa, diz ele, são mais difíceis de materializar, pois geralmente causam muita expectativa e decepções no público. “Esse é o caso também do menino Tadzio, de ‘Morte em Veneza’, do Thomas Mann. Há personagens que sempre escapam: a Capitu é fugidia, dissimulada. Como você desenha o rosto dela, alguém que se sustenta justamente pela força da indefinição, da impossibilidade de ser transcrita em palavras ou imagens?”, questiona Costa Pinto.

Ele analisou a adaptação sombria de “Dom Casmurro” feita pelos quadrinistas Felipe Greco e Mario Cau, e destacou que a obra valoriza bem o devaneio de adultério de Bentinho a respeito de Sancha (mulher do personagem Escobar), quando dá a mão para ela em uma despedida. “O ciúme dele em relação à Capitu é deflagrado após o personagem ter essa fantasia e ficar refletindo sobre paixões proibidas. Não é preciso conhecer muito sobre psicanálise para pensar que ele estava com um desejo sobre Sancha e projetou isso na própria mulher, como adúltera. E a HQ valoriza essa cena na qual pouca gente presta atenção”, avalia. “Esse quadrinho, por exemplo, não reproduz tudo o que os personagens falam e fazem, senão estaria comprando a versão do Bentinho”, completa.

Publicada em preto e branco –o que, segundo Costa Pinto, capta a amargura e a rispidez do livro de Machado–, a HQ descreve o momento em que Bentinho se despede de Sancha da seguinte forma: “A mão dela apertou muito a minha e demorou-se mais que de costume. (…) A dona Sancha é uma senhora deliciosíssima”. “Há nesse trecho toda uma ambiguidade na maneira de falar, além de uma coisa inteligente, que é ter valorizado essa cena prévia da fantasia de adultério. Porque fica sempre uma discussão ridícula se Capitu traiu ou não traiu o marido. E há mais um indício de que isso é, na verdade, uma grande fantasia: Bentinho vai assistir a ‘Otelo’, de Shakespeare, no teatro. É a história de um cara que enlouquece por um ciúme doentio e, nesse caso, comprovadamente infundado. Nenhum escritor escolheria ‘Otelo’ como peça para seu personagem acometido de ciúme excessivo se não quisesse dar um significado a isso, traçar um paralelo.”

Manuel da Costa Pinto

  • Há personagens que sempre escapam: a Capitu é fugidia, dissimulada. Como você desenha o rosto dela, alguém que se sustenta justamente pela força da indefinição, da impossibilidade de ser transcrita em palavras ou imagens?

    Manuel da Costa Pinto, crítico literário e colunista da Folha

Obras totalmente recriadas

Na opinião do crítico Manuel da Costa Pinto, muitas vezes é melhor fazer uma recriação completa da obra, visual e textualmente, com ritmo e quebras semelhantes, do que tentar criar um roteiro com balõezinhos e diálogos, o que pode pôr toda a história a perder. “Você também não pode reduzir uma peça de Shakespeare ou uma narrativa de Machado a uma sequência de ‘highlights’, de trechos mais famosos. Porque aí você tira toda a economia estilística do autor de retardar ou intensificar o desenvolvimento de um acontecimento, com um propósito específico, como um final trágico”, diz.

Costa Pinto explica que há quadrinistas que assimilam o enredo de um autor à sua própria estética, outros que respeitam o estilo (e a época) do escritor, e há ainda casos mais comerciais, nichos de mercado para pessoas que gostam de temas específicos (góticos, fantasmas, zumbis, vampiros). “No caso da adaptação de ‘A Queda da Casa de Usher’, de Edgar Allan Poe, o livro original tem um aspecto gótico, mas a HQ ficou com uma estética de terror e zumbi, algo absolutamente estranho ao Poe, que é do século 19 e tem toda uma sobriedade que se perdeu nessa versão”, analisa o crítico.

O especialista também faz ressalvas às adaptações de Shakespeare publicadas pela Editora Nemo. “Há uma grande uniformização nos traços, que são computadorizados. Você não percebe nenhuma diferença entre ‘Otelo’ e ‘Macbeth’. O primeiro tem toda uma atmosfera leve e festiva de Veneza, enquanto o segundo se passa em castelos da Escócia que são sempre soturnos, é um teatro do poder, sanguinolento, com caráter de pesadelo. Mas aqui eles estão todos pasteurizados”, afirma Costa Pinto.

Por outro lado, ele cita alguns bons exemplos, como a versão de “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, que faz uma correspondência história com a estética da época em que o livro foi lançado (1852). “Os desenhos têm um estilo mais autoral, foram inspirados no [pintor francês Jean-Baptiste] Debret, que retratou muito a cena urbana do Brasil escravocrata. Essa HQ capta toda a iconografia da época, a atmosfera das igrejas, dos oficiais, o Rio de Janeiro picaresco”, enumera o especialista.

Já “Kaputt”, do jornalista e escritor italiano Curzio Malaparte (1898-1957), foi adaptado em 2014 pelo quadrinista gaúcho Eloar Guazzelli Filho, que trouxe o livro original para dentro de sua estética. “Nesse caso, há um artista com determinada linguagem que encontra na obra [de Malaparte] ressonâncias e confluências com a sua própria”, destaca Costa Pinto.

Manuel da Costa Pinto 2

  • Você também não pode reduzir uma peça de Shakespeare ou uma narrativa de Machado a uma sequência de highlights, de trechos mais famosos. Porque aí você tira toda a economia estilística do autor de retardar ou intensificar o desenvolvimento de um acontecimento, com um propósito específico, como um final trágico

    Manuel da Costa Pinto, crítico literário e colunista da Folha

Gênero literário

De acordo com o crítico, cada vez mais os quadrinhos são considerados uma forma à parte de literatura. “As HQs se transformaram num gênero específico, e têm surgido muitas graphic novels para adultos. O público está bastante interessado em textos autorais e histórias novas, porque as adaptações têm todos esses aspectos problemáticos que eu já mencionei”, compara.

Segundo Costa Pinto, um marco nas graphic novels foi o livro “Maus”, lançado em 1980 pelo quadrinista Art Spiegelman. Nascido na Suécia e naturalizado americano, ele foi ganhador do prêmio Pulitzer em 1992.

“Spiegelman é um autor que se apropriou da linguagem dos quadrinhos para falar de um assunto extremamente sério, que é o Holocausto. O pai dele foi um judeu polonês que passou por um campo de concentração, e a narrativa é ele conversando com o pai, que conta tudo o que aconteceu", diz. Na história, os judeus são retratados como ratos, e os nazistas, como gatos. "É o universo do bestiário –quando se fala em gato e rato, logo se pensa na Disney, no ‘Tom e Jerry’–, mas em ‘Maus’ esse quadrinista criou bichos meio homens para mostrar algo totalmente sinistro”, completa o crítico.