Cinema em mutação

De aposta arriscada a sucesso inesperado, X-Men formou o 1º grande universo cinematográfico de super-heróis

Roberto Sadovski Do UOL, em São Paulo Reprodução

Tinha tudo para dar errado. Muito errado. Adaptações de personagens de gibis estavam na corda bamba desde o fracasso artístico e comercial de "Batman & Robin", em 1997. O orçamento era apertado, assim como o prazo de lançamento. Astros? Nenhum, só dois atores ingleses classudos ancorando um elenco sem nomes de peso. O protagonista da coisa, por sinal, era um australiano totalmente desconhecido estreando no cinemão. Tudo sob o comando de um diretor com dois longas no currículo, sucesso no circuito independente e total desconhecimento do que seriam "mutantes".

Ainda assim, "X-Men" chegou aos cinemas no meio da temporada do verão ianque em 2000 e conseguiu um pequeno milagre: provou que as regras para levar super-heróis dos quadrinhos ao cinema podiam, e deviam, ser reescritas. Foi o início do primeiro universo compartilhado de heróis do cinema, bem antes de Robert Downey Jr. colocar a armadura de Homem de Ferro. Um universo que chega ao fim agora, com a estreia de "X-Men: Fênix Negra".

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Do desenho para o cinema

Os mutantes da Marvel levaram cerca de uma década para sair do papel e chegar aos cinemas. A editora planejava traduzir os heróis para o cinema desde meados dos anos 80, mas foi só depois do sucesso da série animada do começo da década seguinte que a produtora Lauren Shuller Donner comprou os direitos para a Fox.

Robert Rodriguez e Paul W.S. Anderson foram convidados, mas recusaram a direção do projeto, enquanto meia dúzia de roteiristas - de John Logan a Joss Whedon - tentavam traduzir as aventuras dos quadrinhos para um filme de duas horas. Por fim, Bryan Singer, em alta depois de "Os Suspeitos", abraçou o projeto depois de flertar com o quarto "Alien".

Ele foi ouvir a proposta de um executivo do estúdio que, num almoço, explicou como eram empolgantes os poderes de cada herói - para o tédio total de Singer. Seu parceiro no projeto, o produtor e roteirista Tom DeSanto, salvou o encontro ao levantar a analogia da luta pelas minorias, comparando Charles Xavier e Magneto com Martin Luther King e Malcolm X. Intrigado, Singer optou por limar os aspectos mais fantásticos e ancorou sua trama como uma ficção científica de tintas realistas.

O estúdio topou, até porque isso significou cortar algumas cenas que encareciam o projeto, como um treinamento na Sala de Perigo dos mutantes. Personagens que pediam mais investimento para ser realizados, como o Fera, Noturno e Pyro, também foram eliminados. O roteiro ainda recebeu uma última versão de David Hayter, que então trabalhava como ator, dublador para videogames (é dele a voz do herói Solid Snake em "Metal Gear") e motorista.

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Frio, bronca, aplausos e borracha

Como foram as filmagens de "X-Men: O Filme"

A filmagem, concentrada em Toronto, começou antes mesmo de o elenco estar finalizado. O motivo era a pressa em rodar todas as cenas com Ian McKellen. Escalado para dar vida ao terrorista mutante Magneto, ele tinha pouco mais de duas semanas "livres" antes de partir para uma longa temporada na Nova Zelândia para trabalhar em "O Senhor dos Anéis".

Para complicar ainda mais, Dougray Scott, escolhido para o papel de Wolverine, machucou o braço durante as filmagens de "Missão Impossível II" e saiu do filme. Hugh Jackman, que já havia feito dois testes e não contava mais com o papel, foi chamado mais uma vez e, ao ser visto por Singer no lobby do hotel que abrigava a produção, ganhou o personagem.

Embora o estúdio não tivesse tanta fé em uma adaptação de quadrinhos como "X-Men", desenhada para ser uma produção modesta, o set estava coalhado de entusiastas. Longe dos executivos, a equipe técnica celebrava a chegada dos personagens icônicos ao cinema, como que antevendo a dominância dos super-heróis na cultura pop do novo século.

Apesar de Singer ter banido histórias em quadrinhos no set - ele acreditava que os atores não precisavam de referências dos gibis -, vários exemplares chegaram às mãos do elenco, em especial Jackman, que não fazia a menor ideia do que seria um Wolverine. O ator, porém, rapidamente entendeu a simbologia do mutante das garras de adamantium e abraçou o personagem.

Visitando as filmagens em fevereiro de 2000 numa Toronto gelada, testemunhei a equipe aplaudindo o ator ao entrar no set - descobri depois que ele tomava uma ducha gelada antes de filmar, para sentir fisicamente a fúria do mutante canadense.

A atmosfera nas filmagens, por sinal, era de empolgação - mesmo com a ocasional explosão de Bryan Singer, que não tinha exatamente tato para lidar com pessoas. Em um dia inteiro, testemunhei o diretor comandar Jackman em seu primeiro encontro com a adolescente Vampira (Anna Paquin), em um bar de quinta que promovia lutas clandestinas. A cena ocorria logo após a primeira luta do Wolverine, com Jackman e Paquin acompanhando um noticiário sobre mutantes na TV, ao mesmo tempo em que um grandalhão com o olho roxo, depois de levar uma sova do forasteiro, pede seu dinheiro de volta pois "conhece seu segredo". Rapidamente, o Wolverine encosta o sujeito na parede e o ameaça com as garras que brotam de seus punhos - no set, um braço artificial com pele de borracha pipocava as garras com um mecanismo hidráulico. Ou melhor, as recolhia: a cena no filme está em reverso.

O sucesso

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Das filmagens em fevereiro à estreia em julho, "X-Men" embarcou em uma campanha ousada, acompanhada por mudanças nos quadrinhos da Marvel e por uma série de brinquedos relacionados ao filme. O lançamento foi em Nova York, com todo o elenco espantado com a euforia em torno do filme. Ao abraçar um estilo mais sóbrio, usando as lições aprendidas no ano anterior com "Matrix", inclusive com trajes de couro substituindo os colantes coloridos das HQs, "X-Men" mostrou uma forma de adaptar super-heróis dos gibis sem focar no nicho dos fãs, com uma história universal sobre aceitação, sobre a luta das minorias, sobre o equilíbrio entre paz e ódio - tudo emoldurado com um filme empolgante e original.

É um testamento à força do trabalho de Singer e sua equipe que o visual de tudo em torno dos X-Men, como o computador Cérebro e o design da mansão de Charles Xavier, tenha sofrido alterações mínimas até o recente "Fênix Negra".

Ao fim de sua carreira, "X-Men" havia coletado US$ 300 milhões em todo o mundo, mais do que triplicando seu orçamento. Coincidentemente, seu lançamento ocorreu em paralelo com o fim das disputas legais acerca dos direitos de "Homem-Aranha", que se tornou o filme seguinte com o selo Marvel a chegar aos cinemas.

Na época, os personagens da editora encontravam-se espalhados por meia dúzia de estúdios, resultado de acordos que, na década anterior, serviram para oxigenar as finanças do grupo e salvá-lo da falência. Assim, "X-Men", da Fox, dificilmente se encontraria com "Homem-Aranha", da Sony. Não importava. O início tímido dos mutantes foi o aperitivo para o colosso que se tornou o Cabeça de Teia em 2002, primeiro grande fenômeno dos quadrinhos no cinema desde "Batman", de 1989.

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As sequências

Com o caminho aberto, "X-Men 2" ganhou mais controle criativo por parte de Bryan Singer e um orçamento mais robusto: US$ 110 milhões, transformados em US$ 400 milhões quando o filme chegou aos cinemas em 2003.

As filmagens de "X-Men 2", transferidas para Vancouver, na outra costa do Canadá, mostravam um clima diferente, mais festivo, com o elenco mais entrosado e trajes mais confortáveis - "Agora posso ir ao banheiro", confessou Jackman.

"X-Men 2" foi mais a fundo nas metáforas com o mundo real, representadas com a liberdade da ficção científica. Singer, que sentiu na pele o peso de se sentir diferente por anos por ser gay, colocou uma lupa na correlação entre orientação sexual e mutação genética. Em uma cena particularmente brilhante, o jovem Homem de Gelo (Shawn Ashmore) "sai do armário" para os pais e revela ser um mutante - ao que sua mãe, aterrorizada, retruca: "Será que você pode não ser um mutante?"

O filme abriu espaço para a adaptação da "Saga da Fênix", série mais famosa dos gibis dos heróis, mas o terceiro filme não correu como esperado. Apesar de estar disposto a comandar mais uma aventura, Bryan Singer foi seduzido pela possibilidade de ressuscitar o Homem de Aço com "Superman - O Retorno" e pediu para a Fox segurar a produção dos heróis mutantes por um ano. Os executivos recusaram, e Brett Ratner, cogitado anos antes para dirigir o primeiro "X-Men", assumiu o leme em "O Confronto Final".

Mas o filme se tornou questão de honra para Tom Rothman, então presidente da Fox, que mostrou disposição incomum para atropelar o "Superman" do ex-colaborador. A terceira aventura dos mutantes, apesar do orçamento gordo de US$ 210 milhões, sofreu com o tempo espremido de sua produção. Ratner merece crédito por não mudar o que já estava estabelecido pro Singer, inclusive direção de arte e figurinos, além da escalação de Kelsey Gramer como o Fera.

Além disso, a estrela de Jackman e de Halle Berry (que tinha o papel da heroína Tempestade) havia crescido para além do filme, e os dois tiveram seus papéis anabolizados, além de estampar seu nome com destaque no pôster. Contratos e disputas nos bastidores prejudicaram o roteiro, que logo se livrou do Ciclope (James Marsden, que foi trabalhar com Singer em "Superman") e misturou duas linhas narrativas distintas, não resolvendo bem nenhuma delas.

Não fez diferença. "X-Men: O Confronto Final" terminou sua carreira com US$ 450 milhões em caixa, US$ 60 milhões à frente de "Superman - O Retorno". A briga revelou o estado das coisas seis anos depois do lançamento discreto de "X-Men": o cinema pop agora pertencia aos super-heróis das histórias em quadrinhos.

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Nascido para matar

Como Hugh Jackman deu vida própria a um dos personagens mais icônicos dos gibis: Wolverine

"Ele é alto demais". "Ele não é forte o bastante". "Ninguém sabe quem ele é". Se as redes sociais fossem populares quando Hugh Jackman foi escolhido para ser o Wolverine em "X-Men", a gritaria dos fãs seria ensurdecedora. Desconhecido, sem nenhum crédito em cinema, o ator australiano chegou ao set no frio canadense disposto a entender e a dominar. Afinal, Wolverine é o mais popular dos mutantes da Marvel, e a trama do primeiro filme trafega em torno dele. Não só funcionou, como Jackman terminou repetindo o papel em mais oito filme, fosse como protagonista, fosse em uma ponta divertida. Mais ainda: ele se tornou um astro legítimo, usando as oportunidades abertas por "X-Men" para trabalhar em filmes diversos como "Van Helsing", "O Grande Truque", "Fonte da Vida", "Les Miserables", "Os Suspeitos" (outro, de Denis Villeneuve) e "O Rei do Show".

Mas Wolverine será, por um bom tempo, sua grande assinatura. Depois de "X-Men: O Confronto Final", o estúdio passou a organizar a série em uma sequência de aventuras-solo, que trariam Magneto e Tempestade como protagonistas. O primeiro, óbvio, foi "X-Men Origens: Wolverine", que trouxe Gavin Hood na direção e um novo olhar na gênese do mutante canadense. A produção, porém, sofreu com roteiros nada empolgantes, efeitos digitais surpreendentemente pobres e uma direção frouxa, sem foco, que só ajudou a bagunçar a cronologia da série. Pecado maior: a apresentação de Ryan Reynolds como o mercenário Deadpool foi, eu resumo, ridícula. Hugh Jackman segurou o tranco na base do charme e do carisma que só astros de verdade possuem.

"Wolverine Imortal", de 2013, foi um excelente controle de danos, agora sob o comando de James Mangold. Deixando a fantasia de super-heróis de lado, o filme revelou-se um drama de ação que mergulhou no passado do herói, resolvendo seus traumas com sua fúria assassina e levando a narrativa para o Japão. Inspirado na minissérie de Chris Claremont e Frank Miller, que definiu a personalidade do herói nos gibis, "Wolverine Imortal" não estraga nem quando seu clímax sucumbe à vulgaridade dos efeitos especiais fora de tom. O acerto trouxe Jackman de volta à série principal em "Dias de Um Futuro Esquecido" no ano seguinte, mas parecia que ele já havia mostrado tudo que podia com o personagem. Mas não foi bem assim.

"Logan" foi lançado em 2017 e, mais uma vez, mostrou que os filmes com o DNA dos mutantes eram palco perfeito para subverter as regras dos super-heróis no cinema. Mais uma vez com Mangold na direção, a aventura trouxe o herói envelhecido, cuidando de um Charles Xavier (Patrick Stewart) debilitado por um trauma inimaginável, e às voltas com uma jovem que mostra a mesma fúria incontrolável que conduziu sua vida. Dirigido como um western moderno, "Logan" trouxe heróis humanizados, em que seus conflitos internos corriam em paralelo com a violência extrema a seu redor. Ao fim, Wolverine faz o sacrifício supremo, e Jackman se despediu do personagem que o apresentou ao mundo de forma agridoce. Não poderia ser diferente. Não poderia ser melhor.

Viagem no tempo

A saga "X-Men" década a década

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Anos 60

O reboot da série em 2011 trouxe um novo elenco e uma nova proposta. "X-Men: Primeira Classe" voltou aos anos 60, estreitando os laços do filme com a realidade, colocando os mutantes como uma equipe de combate em formação, liderada por Charles Xavier (James McAvoy) e Magneto (Michael Fassbender), que termina lidando com a crise dos mísseis de Cuba. Jennifer Lawrence e Nicholas Hoult engrossam o elenco, que ainda traz Kevin Bacon como um vilão bacana e um vigor estético e narrativo que renovou o interesse nos heróis, cortesia do diretor Matthew Vaughn.

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Anos 70

A volta de Bryan Singer à direção celebrou também o encontro de seus dois elencos. Em "Dias de Um Futuro Esquecido", Wolverine tem sua mente projetada de um futuro distópico, em que a humanidade foi encarcerada e os mutantes mortos por robôs gigantes chamados Sentinelas, para o passado, quando Mística (Jennifer Lawrence) mata um cientista, disparando o ódio sem fim da humanidade pelos mutantes. A ação em duas linhas temporais podia resultar em uma grande confusão, mas o texto enxuto de Simon Kinberg mantém o drama tão interessante quanto a ação.

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Anos 80

Tudo que "Dias de Um Futuro Esquecido" teve de brilhante, este "X-Men: Apocalipse" teve de equivocado. A começar pelo prólogo cafona no Egito antigo, em que o mais poderoso mutante do planeta é colocado em hibernação. Apocalipse (Oscar Isaac, com uma maquiagem ridícula) desperta nos anos 80 e passa a recrutar outros seres superpoderosos para sua causa. O conflito mais uma vez é entre Magneto, que é impedido de viver uma vida normal e vê sua família assassinada ante seus olhos, e Xavier, agora tocando sua Escola para Jovens Superdotados a todo vapor.

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Anos 90

A essa altura, "X-Men: Fênix Negra" já jogou toda lógica ao vento, com a cronologia não fazendo o menor sentido. Afinal, Magneto devia estar com quase 70 anos, e os alunos da "Primeira Classe" beirando os 50. Mas "fazer sentido" não estava mesmo nos planos de Simon Kinberg, que assumiu a cadeira de diretor no encerramento da saga mutante no cinema. Depois de "Fênix Negra", os heróis vão para as asas do über produtor Kevin Feige para ser integrados ao Universo Cinematográfico Marvel. Mas foi uma jornada e tanto!

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