Braço direito

Montadora dos filmes de Scorsese, Thelma Schoonmaker, vencedora de três Oscars, está mais uma vez indicada

Fernanda Ezabella Colaboração para o UOL, de Los Angeles Getty Images

Por trás de todo filme de Martin Scorsese nos últimos 40 anos, há uma mulher baixinha de cabelos brancos e sorriso largo chamada Thelma Schoonmaker. Aos 80 anos (que completou no último dia 3 de janeiro), a montadora, uma das mais prestigiadas de Hollywood, é dona de três estatuetas do Oscar e acumula outras cinco indicações. A mais recente é por "O Irlandês", que concorre na cerimônia deste anos —assim, igualou o recorde de Michael Kahn e é a mulher mais vezes indicada ao principal prêmio do cinema americano na categoria montagem. É, também, dona de um Leão de Ouro, do Festival de Veneza, pelo conjunto de sua obra.

Embora não tenha pinta de estrela de cinema, Schoonmaker é uma lenda para os cinéfilos. Numa noite de janeiro, num cinema em Hollywood, foi perseguida por fãs na saída de um evento. Afinal, foi ela quem Scorsese escolheu para editar seus clássicos "Touro Indomável" (1980), "Os Bons Companheiros" (1990) e "Cabo do Medo" (1991). A parceria entre os dois já dura quase seis décadas, muito mais que qualquer um dos cinco casamentos do cineasta.

"Entrei no cinema muito por acidente", disse Schoonmaker antes de uma exibição especial de "O Irlandês", indicado a dez categorias do Oscar, incluindo filme do ano e direção para Scorsese. A premiação acontece no domingo, dia 9 de fevereiro.

Schoonmaker acredita que o sucesso duradouro da parceria com Scorsese vem da "falta de conflito de egos". "Nessas relações entre diretor e editor, há muita vaidade. Mas com a gente nunca foi assim", contou. "Claro, ele me treinou, seu gosto é meu gosto. Ainda assim, às vezes discordamos."

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'Estraguei muito filme de Fellini até encontrar Scorsese'

Schoonmaker queria ser diplomata quando adolescente, e suas origens ajudavam no sonho. Filha de americanos, ela nasceu na Argélia: seu pai vivia mudando a família de país por conta de seu trabalho numa petrolífera. De lá, foram para Aruba após a invasão da França pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Morou em Portugal, voltou para os Estados Unidos aos 15 anos, estudou russo e, na faculdade, optou por Ciências Políticas na Cornell University. Chegou até a tentar emprego no Departamento de Estado americano, mas foi um estágio "horroroso" seguido de um cursinho de cinema de seis semanas que mudou sua vida.

Ainda na faculdade, respondeu a um anúncio de emprego nos classificados do "New York Times". Dizia não ser necessária nenhuma experiência. "Era algo raríssimo, e eu fui atrás", disse.

"O emprego era horroroso", ela lembra, com uma risada. "Eu ajudava meu chefe a destruir os trabalhos de Fellini, Antonioni e Truffaut. Cortávamos aleatoriamente os negativos para fazer os filmes caberem no espaço da programação noturna da TV."
Às vezes, os filmes dos mestres europeus eram tão longos que o chefe tirava uma bobina inteira de filme. Ele afirmava que ninguém assistia aos filmes da madrugada, o que ela descobriu mais tarde ser uma mentira. Scorsese assistia. "Mas acabei aprendendo um pouco sobre cortar negativos e outras coisas técnicas, como fazer legendas", disse.

O estágio valeu a pena. Ela se matriculou no curso de cinema de verão da New York University e, durante uma aula, levantou a mão quando um professor perguntou se alguém tinha experiência com negativos para ajudar um estudante desesperado. Nascia assim a amizade entre Schoonmaker e Scorsese.

Ainda nos seus 20 anos, o jovem cineasta estava montando o curta final do curso, "What's a Nice Girl Like You Doing in a Place Like This?", e alguém da sua equipe tinha cortado os negativos de forma errada. "Trabalhamos por três dias. Scorsese conta que eu fiquei acordada por 40 horas", disse Schoonmaker, que até então estava acostumada a "destruir" clássicos, e salvou sua primeira obra.
"Eu não lembro disso, mas desde então já fiquei acordada por 40 horas muitas vezes... Preparando seus filmes, claro."

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Marty, o mais bagunceiro

O cinema está repleto de histórias de colaborações longevas entre diretores e editores, como Steven Spielberg e Michael Kahn, Spike Lee e Barry Alexander Brown, e Woody Allen e Alisa Lepselter. É um trabalho que pede muita confiança e conhecimento no gosto do parceiro.

No escurinho da sala de edição e no silêncio longe do burburinho do set, é onde o filme ganha corpo, música, ritmo, sequência e muitos, muitos cortes.

Para Schoonmaker, a amizade decolou porque Scorsese percebeu, logo quando se conheceram, que ela faria o que fosse preciso em nome do filme. E também porque ele e seus amigos viviam numa tremenda bagunça.

"Marty era o pior de todos, o mais bagunçado. Quebrava o vidro da moviola, perdia as coisas. Então eu cheguei para organizar e fui ficando. Foi assim que virei montadora", contou. "Ele me ensinou tudo o que sei sobre montagem. Eu não sabia nada. Tive muita sorte de conhecê-lo."

Na sala de edição, os dois conversam sobre tudo: política (foi contra a Guerra do Vietnam e apoiou o movimento negro por Direitos Civis), religião (ele já quis ser padre), arte e música. Mas Scorsese também costuma ver filmes clássicos num monitor separado, em silêncio. "Às vezes ele chama: 'vem ver essa cena incrível, olha esse ator que demais'. Ele me mostra, a gente discute e é a melhor aula de história do cinema do mundo."Ainda assim, Scorsese é bastante crítico com seu próprio trabalho. "Ele já me disse algumas vezes: 'Queime isso, nunca mais me mostre de novo!'"

Enquanto ele é adepto da meditação, ela diz que sua concentração vem naturalmente no trabalho. "Às vezes você fica frustrado, que acha que não vai conseguir solucionar um problema", falou. "Nessas horas, vou para casa, durmo e volto cedo no dia seguinte e tento de novo. É meu único ritual."

Eu não sabia nada sobre cinema. Nada. Mesmo com 'Touro Indomável', ainda estava aprendendo

Thelma Schoonmaker, sobre o filme que lhe deu seu primeiro Oscar

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As rugas de De Niro

Mas em "O Irlandês", apesar dos longos 200 minutos de duração, Schoonmaker não passou perrengue. "Foi um trabalho muito tranquilo. Scorsese queria algo que fosse enganosamente simples e sem nenhuma montagem maluca", diz Schoonmaker no cinema Egyptian Theater, um dos mais antigos de Hollywood.

O filme segue a trajetória de um motorista de caminhão que vira matador de aluguel para os mafiosos da Filadélfia. O protagonista é Robert De Niro, que atua ao lado de Al Pacino e Joe Pesci. Para mostrar os três quando eram jovens, o diretor usou uma técnica nova com duas câmeras infravermelhas de lentes 3D em cada personagem. A novidade foi criada pela equipe do argentino Pablo Helman, indicado ao Oscar de efeitos visuais.

"Achei que ficou ótimo. Mas a performance de De Niro é tão sutil que achamos que estávamos perdendo algo com o rejuvenescimento", contou a montadora. "Pedimos então a Pablo para colocar de volta algumas ruguinhas na cara dele para aumentar sua vulnerabilidade."

"Fiquei muito chateada que De Niro não foi indicado", continuou. Al Pacino e Pesci concorrem ao Oscar de ator coadjuvante.
Como o efeito só servia para o rosto, a produção teve que chamar um "body coach", um treinador de corpo, para lembrar aos atores veteranos como se movimentar como se fossem jovens. "Tinha hora que o corpo dos atores não correspondia com a idade, é verdade", disse. Afinal, os três também estão chegando aos 80.

Numa das cenas, quando Al Pacino se levanta da cadeira, o "coach" avisou Scorsese que o ator não estava "nada jovem". "Marty respondeu na hora: 'então você vai lá dizer isso para ele, porque eu não vou!".

Mulheres à sombra

Em 2019, Schoonmaker recebeu a Bafta Fellowship, o maior prêmio de reconhecimento da indústria cinematográfica britânica, por conta de seu legado em seus 50 anos de carreira. Pippa Harris, presidente da Academia Britânica de Cinema e TV, comentou na época que a editora tem sido "um modelo imponente para outras mulheres nesta arte dominada por homens".

Schoonmaker cita outras mulheres que ajudaram grandes nomes do cinema, como Anne Bauchens, montadora de Cecil B DeMille, Margaret Booth, que editou os trabalhos de DW Griffith, e também Alma Hitchcock, casada com Alfred, de quem foi editora.

"As pessoas acham que havia menos mulher em Hollywood do que realmente havia", disse Schoonmaker na entrega do prêmio. "Eu parabenizo o chamado pela diversidade na indústria. É formidável, claro, mas também espero que as pessoas entendam que as mulheres estavam lá, desde o começo."

Para manter o olhar fresco, basta ter uma pessoa na sala que nunca viu o filme. Você passa a vê-lo através dos olhos dessa pessoa. Por isso fazemos muitas exibições no processo, mais do que outros diretores. Você percebe se a pessoa está entediada, se está rindo nas horas certas

Thelma Schoonmaker

As Donas do Show

Este é o terceiro capítulo de uma série de reportagens do UOL Entretenimento com histórias de mulheres que não necessariamente são famosas ou estão em cima do palco, mas que se tornaram referências no universo da arte.

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