Maluco beleza, com certeza

Como o legado de Raul Seixas, morto há exatos 30 anos, segue vivo com vários "malucos beleza" por aí

Carlos Minuano Especial para o UOL Diego Padgurschi/UOL

Dizem que Elvis Presley não morreu, se transformou num anônimo caminhoneiro e passa seus dias rodando pelas estradas de Memphis. Com Raul Seixas, considerado o pai do rock brasileiro, morto há exatos 30 anos, não poderia ser diferente. Há quem acredite que ele viva oculto no interior baiano plantando cacau. E há também versões mais bizarras, como a de que no fatídico dia 21 de agosto de 1989, quem partiu em seu lugar foi um cover, e que o roqueiro verdadeiro teria se mudado para algum canto longínquo dos Estados Unidos onde viveria até hoje.

E depois de morto sua fama não para de crescer. Por tudo isso, para uma legião cada vez maior de fãs, é claro que o maluco beleza não morreu.

O apelido, como todos sabem, veio de um dos maiores sucessos do roqueiro baiano, a canção Maluco Beleza, composição de Raul Seixas e um de seus principais parceiros, Claudio Roberto. O título da canção, gravada no disco de 1977, O Dia em que a Terra Parou, se tornou uma marca registrada do "raulseixismo", um sinônimo do estilo de vida do artista, e inspiração para os incontáveis fãs.

Para celebrar a memória do saudoso roqueiro, autor de outros tantos hinos cantados por todos os cantos e gente de todas as idades, como Sociedade Alternativa, Mosca na Sopa e Como Vovó Já Dizia, a reportagem do UOL saiu às ruas para encontrar alguns malucos beleza que circulam por aí. Não foi preciso procurar muito. Encontramos sósias de Raul Seixas que ganham a vida imitando o ídolo até na Flórida, nos EUA.

Diego Padgurschi/UOL
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O primeiro cover

Tamanha dedicação ao ídolo tem até nome: "raulseixismo". Nascido na Mooca, o paulistano Amorim Meneezes, 68, um dos covers mais antigos do maluco beleza, é um dos adeptos. Depois de ouvir Ouro de Tolo no rádio de um táxi na primeira metade da década de 1980, sua vida mudou. Parou até de fumar maconha. "Se eu só uso dez por cento de minha cabeça animal, significa que tenho ainda outros noventa por cento que posso utilizar sem precisar de nada", diz o cover.

Pouco depois, abandonou também uma carreira promissora como executivo de uma grande empresa para viver como Raul Seixas, nos palcos e também em sua vida diária. Logo em seguida fundou a primeira banda, composta somente de covers do artista. Ele conta que acabou se tornando amigo do cantor baiano e recebeu de presente a canção Sou o que Sou, que se tornou a faixa título do disco gravado com seu grupo, lançado um ano após a morte do maluco beleza, em 1990.

A carreira como cover começou há 36 anos, quando ele se lançou em uma série de shows chamada SOS Raul. O sósia diz que nessas apresentações mandava para o ídolo uma energia chamada por ele de RA. "R de Raul e A de Amorim", explica em seguida.

A ideia era ajudar o roqueiro mandando boas vibrações, ele estava precisando muito na época.

Amorim Meneezes, um dos covers mais antigos do maluco beleza

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Ele levou 13 gols em uma partida de futebol insólita

Em agosto de 1992, três anos após a morte do maluco beleza, Amorim esteve no centro das atenções de uma insólita partida de futebol. O jogo colocou em campo para uma disputa surreal dois times de covers: sósias de Raul unidos com covers de Bob Marley contra imitadores do Elvis. O curioso evento foi organizado pelo saudoso jornal Notícias Populares, o célebre NP.

Mas o histórico jogo não terminou bem para o time do maluco beleza. "Foi um massacre", descreve a reportagem publicada na edição do NP do dia 4 de agosto de 1992. Os covers do Raul e de Bob perderam de 13 a 0. "Se Raul descesse aqui de disco voador ficaria revoltado com nossa atuação", lamentou na matéria o cover Bonifácio Seixas.

Quem deixou passar os 13 gols foi Amorim Meneeses. A reportagem do NP, como era de praxe, se esbaldou com a performance do cover. "Parecia o frango da Sadia com seus óculos de aviador, aceitou todas". Mas o sósia explica que a defesa foi prejudicada.

Estavam todos chapados, os rastafáris fumados e os 'raulseixistas' bêbados, só eu sóbrio, fiz o que pude.

Depois do jogo, os raulseixistas pernas-de-pau prometeram uma revanche que até hoje não aconteceu. Mas caso ocorra, Amorim afirma encarar novamente o desafio, e avisa aos topetudos do Elvis que é melhor eles se prepararem bem. "Operei as cataratas e agora estou enxergando tudo".

Conheça fanáticos que mantêm o Maluco Beleza vivo

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Batizar filho como "Raul Seixas" rendeu facada para sósia

Outro maluco beleza "de pedra" é o cover Penna Seixas, 57. O currículo singular do baiano de São José do Paiaiá começa pelo número de filhos. Ele pensava ser 11, mas estava enganado. Recentemente, uma antiga namorada apareceu com um jovem de 16 anos, do qual ele seria o pai.

Um teste de DNA confirmou a informação. Ele foi logo cuidando da documentação, mas antes de reconhecer a paternidade impôs uma condição, o nome do garoto teria que mudar. "Vai se chamar Jerry Adriani!". Ele explica que não colocou Raul Seixas porque já é o nome de seu décimo primeiro filho.

O cover conta que registrar o filho com o nome do maluco beleza não foi nada fácil.

Nenhuma mãe deixava

Para evitar que o filho fosse registrado com o nome de Francisco, o mesmo do avô, Penna foi no hospital, "sequestrou" por alguns instantes o bebê recém-nascido e correu para o cartório.

Foi só o começo de uma via crucis de problemas. A mãe do garoto não gostou nada, rasgou certidão, entrou com processos e Penna já levou até facada do avô, que ficou bem contrariado porque o neto não foi batizado com seu nome.

Mas o rolo com o filho foi fichinha perto de outra sacudida que levou anos antes de começar sua vida de sósia do maluco beleza. Depois de um grave acidente de carro do qual foi o único sobrevivente ele ficou nove meses em coma.

Quando despertou ainda ficou dois anos sem andar. A barba que usa hoje diferentemente do que muitos pensam não foi para aumentar a semelhança com o ídolo, mas para esconder as cicatrizes.

Penna sobreviveu e decidiu, como tantos outros covers, ganhar a vida imitando o seu ídolo Raul Seixas. Há cerca de 30 anos faz pelo menos um show por semana, mas conta que já chegou a tocar de quinta a domingo e a fazer 120 apresentações por ano.

Ele também planeja para esse ano uma turnê de shows com o parceiro Betuxi Nova, cover de Marcelo Nova com todo o repertório do último disco de Raul, A Panela do Diabo, de 1989 (Warner) e ainda um espetáculo em que encenará a ressurreição do roqueiro. Para a cena ele utilizará o caixão no qual o corpo do cantor foi levado para a Bahia, que ele guarda até hoje na garagem sem porta da casa onde vive em um condomínio fechado em Itapevi, interior de São Paulo.

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Coach de Raul Seixas

O universo dos sósias "raulseixistas" é um lugar curioso, cheio de personagens e histórias singulares. Mas é também cada vez mais um território de disputa. Muitos sósias competem entre si o lugar de melhor imitador de Raul. Alguns poucos abrem mão da corrida, caso por exemplo de Penna Seixas, que garante estar fora do páreo. "Costumo dizer que sou um dos piores".

Mas para quem pretende entrar na concorrência, já tem até um curso virtual que ensina como se dar bem imitando o Raul. A ideia é do sósia J. Peron, 40. No site escola de covers ele promete ensinar como dominar os palcos e dar um salto na carreira, interpretando o maluco beleza.

Peron conta que começou a carreira de cover do Raul meio na brincadeira durante shows que fazia em barzinhos com sua primeira banda. As risadas que tirou da plateia deram o toque. Ele levava jeito para a coisa. Foi então que decidiu estudar a obra do artista para se lançar como sósia do roqueiro baiano. "Fiquei um ano estudando canções e figurinos".

E o cover se deu bem. "Raul abriu as portas do Brasil para mim", diz. Ele, que tocava apenas em barzinhos de Campinas, onde mora, conta que já passou com seu show de imitações do roqueiro baiano por mais de 13 estados do país. Seu espetáculo é baseado em videoclipes de canções do artista. Faço oito trocas de figurino em uma apresentação que dura pouco mais de uma hora.

Além dos shows que faz pelo país, cerca de dois por mês, Peron agora cuida também de seu curso digital de cover. "Eu ensino a imitar o Raul para quem queira também se profissionalizar nisso, porque não? Dá para ganhar um bom dinheiro".

Outro conhecido cover no meio "raulseixista" é Roberto Seixas, 63. Há 32 anos ele interpreta o maluco beleza nos palcos e tem no currículo cinco CDs gravados. Ele, como outros, diz que prefere ficar fora da disputa pelo posto de melhor imitador, a afirma ter um bom relacionamento com seus colegas de ofício. "Todos contribuem para manter viva a obra de Raul".

Mas sua página na internet diz outra coisa. Um texto que apresenta seu trabalho afirma que ele foi reconhecido como "o melhor sósia e cover de Raul Seixas" e que possui o reconhecimento da família do ídolo, por meio de uma autorização registrada em cartório da mãe do roqueiro, Maria Eugênia, para ele usar o sobrenome do filho.

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Já cheguei a descer de um ônibus para pegar uma página de revista com uma foto do Raul que estava jogada no lixo.

Sérgio Leite, um "fã radical" de Raul Seixas

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"Raulseixismo" puro

A reportagem do UOL também encontrou Sérgio Leite, 55, que veio de Belém do Pará para tocar canções do Raul num famoso reduto "raulseixista" de São Paulo, conhecido como bar do Kaká. Ele não é exatamente um cover, mas sua principal renda vem dos shows que faz pelo país cantando músicas do roqueiro, e admite ser um fã da ala radical há tempos. Ele tem livros, todos os discos e até uma jaqueta do maluco beleza em um quadro, que enfeita a parede de sua casa.

Ele revela ainda ter feito uma traquinagem tipicamente "raulseixista". Pegou um texto de Raul, colocou uma melodia e gravou em um CD. Em Belém, em entrevistas, afirmou ser uma parceria com o roqueiro. "Foi através dessa música que meu trabalho começou a ficar mais conhecido", conta Leite.

Segundo ele a conversa colou. Sempre que perguntam ele manda a mesma história. "Estive em São Paulo, tomei três cervejas com ele". Também repete o gestual, mostrando três dedos, alusão a uma entrevista em que Raul fez o mesmo para relatar um encontro inventado com John Lennon durante uma viagem aos EUA. "Isso é 'raulseixismo' puro, bicho!", completa.

Adenilson Nunes/Folhapress Adenilson Nunes/Folhapress

Cover de cemitério

Histórias de fanatismo em torno de Raul Seixas estão por toda a parte. O historiador Leonardo Mírio, 46, acreditava já ter visto tudo durante os vários anos que seguiu colhendo depoimentos desde 2013 para os três livros independentes que publicou sobre o roqueiro. Mas durante uma viagem a Salvador, viu que estava enganado.

Era fim de tarde, ele estava no cemitério Jardim da Saudade onde Raul foi enterrado. Por lá a circulação de fanáticos "raulseixistas" é intensa. Prova disso são as cinco lápides roubadas. Presenciei até um esquema de segurança privada com o nome Segurança Seixas.

Quando o historiador estava guardando suas coisas para ir embora, por volta de umas 17h30, foi surpreendido por uma figura que saltou por trás de uma árvore. Era um cover do Raul com dois violões na mão. "Tomei o maior susto", relembra. Segundo ele, o cover vai todos os dias ao cemitério tocar para o Raul.

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Até na Flórida pedem: Toca Raul!

O mineiro Riva Sob poderia ser apenas mais um entre os tantos covers de Raul, mas a diferença é que seus shows acontecem nos EUA. Ele conta ter começado com uma canja, mas o povo aplaudiu e quando parou começaram a pedir: toca Raul. "Onde você for sempre terá que alguém gritando essa frase", diz o cover que desde 2008 imita Raul em palcos norte-americanos. No próximo dia 25, ele se apresenta em um show em homenagem ao roqueiro na Flórida, onde vive.

Em São Paulo, no Bar do Kaká, shows com sósias de Raul também são frequentes. Mas de vez em quando o dono do estabelecimento tenta mudar o cardápio. Há pouco tempo, por exemplo, ele convidou um cover de Jimi Hendrix para tocar na casa, mas o desfecho foi diferente do que imaginava.

Nas duas primeiras músicas o povo curtiu, mas quando ele foi começar a terceira, foi interrompido pela galera que gritava: toca Raul.

Para um dos fãs mais conhecidos de Raul, Sylvio Passos, 56, fundador do Fã-clube oficial Raul Rock Club, o culto ao roqueiro se deve, entre outros fatores, a uma lacuna por artistas como ele no cenário musical brasileiro. "Sua obra é atemporal".

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