Super-herói de verdade

O Flash brasileiro que empresta superpoder para ajudar crianças com câncer

Marco Tilly *Depoimento para Osmar Portilho, do UOL Osmar Portilho/UOL

Poderia ser uma quinta-feira qualquer, mas naquele dia, no hospital, a enfermeira me avisou que iria passar uma criança bem debilitada em direção à UTI. Por trás da minha máscara, consegui observar os olhinhos atentos e vi que ela estava carequinha. Nessa hora entreguei a touca do Flash e disse que ele ia se recuperar tão rápido quanto o superpoder dele. Me despedi. Fomos para outros quartos, mas acabei voltando para falar com ele. Miguel. Voltei.

Dava para ver que ele queria mais, queria falar mais. Me entreguei. Parece que a gente pega pedaço nosso e entrega para criança.

Me despedi desse garotinho quatro vezes. Mas eu ia e voltava. Eu queria fazer mais. Queria dar mais. Queria tentar fazer algo pro dia dele ficar melhor. Ali me desliguei do personagem. E foi triste. Tive tempo para pensar. E a gente se cobra porque às vezes não é suficiente. Desmoronei. No outro dia fizemos outro evento e recebemos a notícia que ele tinha ido embora. Ao chegar no outro evento vi a mãe do Miguel, com a touca que demos para ele. Ela foi até lá agradecer a gente pelo dia que ele teve.

Ele passou o último dia dele com o Flash.

Osmar Portilho/UOL
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Eu sou Marco Tilly, tenho 30 anos.

Eu era aquela criança fascinada pelo Batman. Um dos primeiros filmes de super-herói que vi foi o Batman de 1989 com Michael Keaton. Ali deu o estalo. Eu, pivete, ainda lembro que pedi a fantasia do Homem-Morcego. Era coisa simples. Uma camiseta, um short e uma máscara. Ali foi o início do cosplay. Meu irmão era Superman e meu primo, o Robin.

Com o passar do tempo, a gente se torna adolescente e vem aquela coisa de "precisar ser adulto". Aí deixei um pouco de lado.

Mas essa coisa de ser geek sempre volta. Em 2017, era meu aniversário e resolvi fazer uma festa a fantasia. Eu tinha comprado uma máscara do Flash, mas só pra colecionar e deixar de exposição em casa. Comprei um traje da China, mas ele não chegou a tempo. Fica tudo parado em Curitiba, né? Acabei alugando uma roupa de Capitão América e a festa foi sensacional. E meu traje do Flash acabou chegando uma semana depois.

E agora? O que eu faço com isso?

Marco Tilly

Samir Varani/Divulgação Samir Varani/Divulgação
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Bem, eu já ia na Comic Con mesmo e resolvi me arriscar indo de Flash. Foi do nada. Sei lá. Vamos tentar. Minha namorada na época ficou preocupada que não ia conseguir andar comigo. E eu pensei: "Calma, não é assim. Vai vir um ou outro tirar foto comigo".

Eu estava errado.

Eu passei a catraca e consegui dar 15 passos. Dei de cara com um cara vestido de Arrow e fui cumprimentar ele. Fui cercado. Eu não percebi isso. Eu não consegui sair dali. Fiquei 2h30 parado tirando foto. Minha namorada ficou muito brava. Ali eu senti que podia fazer algo como cosplayer.

E aí descobri que aquele Arqueiro Verde era da Heróis do Bem. O Rogério Ferroni, que é o Capitão América e líder do grupo, viu essas fotos e me convidou para participar.

Ele me perguntou se eu queria fazer trabalho voluntário com o Heróis do Bem em visitas em hospitais com crianças com câncer e deficiência.

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Em janeiro de 2018 eu fiz minha primeira visita. Foi muito natural. Foi no Darcy Vargas, no Morumbi. Sempre gostei de criança. Eu sou uma criança. Eu não lembrava que estava em um hospital. Eu estava me divertindo e divertindo as crianças dando mensagens positivas e dando algo bom para elas.

Eu consegui unir coisas que eu gostava do universo geek com uma causa para ajudar pessoas que eu sequer conheço.

Tava tudo bonito até então. Só que na hora de ir embora eu tomei o primeiro baque. Eu tinha esquecido o celular e voltei pra buscar. Uma das diretoras do hospital me encontrou, agradeceu e pediu para voltar em uma festa no fim do ano. Ela disse que seria importante porque "muitas vezes é a última festa de muitas crianças".

Aí senti o baque. Até então não tinha entendido muito bem. Aí vi que estava entrando em algo muito sério. Tivemos muitas vitórias e muitas derrotas. Às vezes nos apegamos.

Marco Tilly

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Coloco o traje e vou lá completar a missão. Não penso no que pode acontecer, só penso que vou encontrar crianças e preciso dar o melhor pra mudar o dia delas. Mesmo que seja só aquele dia.

Costumo dizer que a gente não pode ter muito tempo para pensar. Se você para um pouco e cria muita empatia, você sai do seu herói. Aí a pessoa por trás traje não sustenta. É claro: no dia que eu não sentir mais emoção no que está passando ali eu tenho que parar.

Mas às vezes não estamos preparados.

Eu não tenho noção muitas vezes da proporção e impacto que isso toma. Quando estamos sendo personagens não vemos isso. Muitas vezes, mães vêm conversar conosco após perder o filho e a gente vê como um simples gesto mudou tanto a vida da pessoa.

Uma vez a gente foi pra Porto Velho e visitamos um garoto. Ele tinha pedido para a gente gravar um vídeo para ajudar a pedir uma medula para ele, que estava na fila de transplante. Gravamos. E mais tarde ele conseguiu a medula.

Mas é uma criança de treze anos, sabe? É muito difícil pra ele enfrentar um processo como esse.

Marco Tilly

Depois estávamos em uma feira e lembramos que ele estava indo pra Curitiba pra fazer o transplante. Gravamos mais um vídeo e mandamos uma mensagem pra ele. A tia dele veio agradecer a gente chorando. Ele tinha falado pra ela que estava pensando em tirar a vida dele porque não aguentava mais isso. E quando recebeu o vídeo disse que foi o dia mais alegre da vida dele. Tem criança que marca a gente.

E eu só gravei um vídeo, cara.

Palavras simples, mas como super-herói isso passou uma força muito grande pra ele. Um minuto e você muda a vida de alguém.

Às vezes a gente acaba vendo detalhes e desmonta. Tinha esse menininho que veio tirar foto com a gente e estava numa cadeira de rodas. Ele estava bochechinha muito inchada e muito magrinho. Ele estava super sorridente. Na hora eu vi que ele estava numa situação bem difícil. E ali tive tempo de pensar. Me distanciei do personagem. Aí vem o ser humano e falha. Saí de canto e caiu aquele cisco no olho. Mas tudo bem, a gente é ser humano e é feito pra falhar.

Por causa de uma fantasia atrasada, hoje ser voluntário é parte de mim.

Samir Varani/Divulgação Samir Varani/Divulgação

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