Meio homem, meio monstro

Doug Jones queria ser ator de comédia, mas se transformou em monstros, demônios e alienígenas

Rodolfo Vicentini Do UOL, em São Paulo Reprodução
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Eu nunca sonhei em ser um monstro em um filme. Eu queria ser um ator engraçado de sitcoms ou musicais, fazer coisas para as pessoas rirem e se sentirem bem. Eu não sabia que faria monstros rastejantes em filmes sombrios.

Isso era o que Doug Jones pensava antes de se transformar em estrela (e em monstros e criaturas) de filmes como "A Forma da Água", "Hellboy", "O Labirinto do Fauno" e "Star Trek - Discovery", que tem sua segunda temporada chegando nesta sexta-feira (18) na Netflix, com um episódio inédito por semana. E é por causa da série também que ele virá ao Brasil como atração da "StarCon", no dia 2 de fevereiro, em São Paulo.

Quase sempre com muita maquiagem e em trajes exóticos, o ator norte-americano de 58 anos já fez de tudo na televisão e no cinema, mas não se considera um especialista em figuras assustadoras. "Vocês podem pensar em mim como um especialista, mas eu penso só que sou um ator bobão que foi muito iluminado com papéis distintos", diz Jones em entrevista ao UOL, por telefone, de sua casa em Los Angeles.

E mesmo dando vida a criaturas temíveis, o ator faz questão de se envolver em projetos em que haja uma mensagem positiva. "Mesmo que seja um momento sinistro, até mesmo que eu seja o vilão, quero ser parte da história que tenha um momento de redenção". 

Na conversa, Jones fala de seus principais momentos na carreira, a parceria consagrada com o diretor Guillermo del Toro, o processo complexo de suas transformações, sua vinda ao Brasil para a "Star Trek Convention" e como um religioso pode ser amigo de um demônio.

A transformação de um monstro

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Construção do personagem

"É um longo processo, leva meses antes que a gente filme algo", diz Jones sobre suas transformações no cinema. A sequência é padrão: o ator lê o roteiro, faz anotações, se encontra com o diretor do projeto e vai a um estúdio fazer testes. "Olho no espelho e penso na postura que o personagem tem e o que eu posso incorporar. E então meus testes de roupas e maquiagem começam". Para se transformar em um zumbi ou em um fauno misterioso é preciso fazer (novos) testes, não tem jeito. "Eles colocam peças coladas em você. Se você tem extensões nos dedos, você percebe que mexer um dedo é muito mais dramático do que normalmente, mesma coisa se eu tiver chifres na minha cabeça. Se eu ensaio com as mãos para o alto e o traje só me deixa colocar os braços até a altura do peito, vou precisar mudar o ecossistema do personagem".

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Horas na sala de maquiagem

A rotina de aplicar a maquiagem pode variar de 1h30 no caso de Saru, de "Star Trek - Discovery", a uma manhã inteira. "Os processos mais longos são com peças coladas dos pés à cabeça e que precisam de pintura na hora, o que pode levar 7h por dia de gravação. Foi o que aconteceu comigo em 'Hellboy 2'", diz Jones sobre o filme em que viveu Abe Sapien, Anjo da Morte e Chamberlain. Ele garante que não é um procedimento chato. "Eu não fico entediado porque não é toda hora que faço, então fico feliz de ficar sentado e deixar o artista de maquiagem trabalhar. Os melhores artistas já colocaram as mãos em mim. Sou muito paciente com o processo. A gente ouve música, assiste vídeos no YouTube, toma um café. O tempo passa".

Como Doug Jones se transforma em um verdadeiro monstro

Veja a transformação do ator em uma criatura horripilante

Rich Fury/Getty Images

"Parça" de Guillermo del Toro

Doug Jones e o diretor mexicano Guillermo del Toro já trabalharam em sete filmes: "Mutação" (1997), "Hellboy" (2004), "O Labirinto do Fauno" (2006), "Hellboy 2: O Exército Dourado" (2008), "The Strain" (2014-2017), "A Colina Escarlate" (2015) e "A Forma da Água" (2017).

Em todos os projetos da parceria, o ator nunca apareceu de cara limpa: sempre foi uma criatura fantástica ou de outro planeta.

Guillermo mudou minha vida. Ele criou uma carreira para mim que eu não sabia que teria.

"Eu o conheci em 1997, então faço monstros há 22 anos. Uma vez que você trabalha com Guillermo del Toro, e ele gosta do que você fez e vocês se conectam, você fica. Cada encontro que temos, ele traz várias ideias e nuances peculiares que quer ver nos personagens", diz, emocionado, sobre o amigo.

O último filme que a dupla fez, "A Forma da Água", rendeu quatro prêmios no Oscar: melhor filme, direção, trilha original e direção de arte. A história da mulher que se apaixona por um homem-peixe é um misto de romance e fantasia, quase um conto de fadas sombrio que transformou uma criatura um tanto assustadora em galã.

E tudo saiu da cabeça do cineasta.

"Guillermo é o gênio mais mágico que conheço. E ele também é a pessoa mais verdadeira que existe, alguém para você se sentar e rir. Ele é o misto perfeito de um cara criativo e divertido."

Doug Jones fala de seus principais papéis

  • Surfista Prateado - "O Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado" (2007)

    "Era o personagem preferido de Stan Lee, e isso foi uma honra. Ele abandonou a própria população para salvá-la depois. O Surfista sacrificou o seu conforto para salvar o planeta. E isso atingiu meu coração".

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  • Abe Sapien - "Hellboy" (2004)

    "Eu adoro Abe Sapien especialmente pela sua relação com Hellboy. Abe é o cara gentil e intelectual, e Hellboy é o bruto que fuma, bebe e xinga todo mundo. É a combinação perfeita". Na franquia de Del Toro, Jones ainda fez o Anjo da Morte e o Chamberlain.

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  • Billy Butcherson - "Abracadabra" (1993)

    "Billy é um zumbi engraçado que era um tipo galã --por causa da maquiagem, e não por mim. E isso veio antes de os zumbis serem populares. Esse filme ainda é muito importante, ele sempre passa na TV no Halloween, que é um gigantesco evento nos Estados Unidos".

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  • Fauno - "O Labirinto do Fauno" (2006)

    "Eu amo o fauno de 'O Labirinto do Fauno', porque ele não sabe se sé bom ou mau. Mas está envolvido neste processo com Ofelia, ajudando-a a encontrar seu destino". No mesmo filme, Jones também interpretou o Homem Pálido, que tinha os olhos nas palmas da mão.

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  • Saru - "Star Trek - Discovery" (2018)

    "Quando os roteiristas me dão um novo roteiro, eu fico surpreso igual a vocês. Tem sido uma jornada com Saru, e o conheço melhor que todos, porque é o personagem que interpretei por mais tempo durante meus 30 anos de carreira".

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  • Homem-anfíbio - "A Forma da Água" (2017)

    "Essa foi a primeira vez que consegui fazer o galã principal do filme. Eu não esperava isso nunca, jamais com essa cara. E isso de novo por causa de Guillermo del Toro, que conseguiu escrever uma coisa tão bela que um monstro conseguia ser o protagonista. Apenas ele poderia fazer isso. Foi um presente para mim".

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Os melhores momentos de Doug Jones no cinema e na TV

O cristão que era melhor amigo do demônio

Há mais de 20 anos vivendo figuras exóticas no cinema e na televisão, Jones já interpretou personagens que deixariam os religiosos mais fanáticos com um pé atrás. Não para o ator, criado como cristão e que separa suas crenças de seus trabalhos.

"Enquanto estes dois pontos não se conflitarem, tudo bem", garante ele. "Um ótimo exemplo disso foi quando Guillermo veio falar comigo sobre o filme 'Hellboy' [2004]. O título sozinho me pareceu estranho, um tal de menino-demônio?", lembra Doug, dando risada da situação.

O ator não conhecia os quadrinhos de Mike Mignola, e a premissa do enredo realmente não era muito palatável para o gosto de Jones. Tudo mudou quando recebeu de Del Toro um calhamaço com o roteiro do filme e, junto, as graphic novels nos quais se inspirou.

"Eu olhei os materiais e perguntei: 'Como cristão, por que isso não me incomoda?'. Guillermo respondeu: 'Nunca foi feito para te incomodar ou ofender'. E ele disse que esta história é sobre os demônios que carregamos todos os dias, todos carregamos algo do nosso passado. E nós temos uma decisão: a gente continua carregando para o resto de nossas vidas ou cortamos e somos livres".

Na trama, Hellboy é invocado por Rasputin e os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, mas é um demônio diferente. Resgatado pelo professor Trevor "Broom" Bruttenholm, o protagonista não é mau e vive seguindo um código moral que não tem nada a ver com o que se espera de sua origem.

Seu melhor amigo é Abe Sapien (papel de Jones), considerado o lado racional da criatura.

Se um demônio do inferno pode sair do seu passado e cortar isso, essa é uma história que pode encorajar as pessoas para olharem para frente. E isso é muito bonito.

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O ET mais humano de "Star Trek - Discovery"

Um dos protagonistas da nova empreitada da saga intergaláctica "Star Trek", Doug Jones interpreta o inteligente Saru, e se emociona ao analisar que a história do primeiro Kelpien a aparecer na franquia tem muito do que o próprio ator viveu.

"Isso me lembra da minha adolescência. Vivendo em Indiana (EUA), olhando para Califórnia como a Terra Sagrada, e eu querendo ser um ator. E isso não é possível em Indiana [a quase 3,5 mil km de distância]. Eu sei como é estar em um lugar que não consegue suprir seus sonhos", diz o ator.

Saru, claro, não tem pretensão de ser um alienígena do entretenimento, mas é o único da sua espécie a se levantar contra as regras e viajar para conhecer o universo. Sua raça tem o dom de prever a morte, e é submissa aos Ba'ul, vivendo como presa em seu planeta.

"Quando Saru era adolescente, ele ficava olhando para o céu e pensava: 'O que mais tem por aí?'. Os Ba'ul têm tecnologia, mas os Kelpiens não fazem parte disso. Um dia ele conseguiu pegar um pedaço do equipamento dos inimigos, e escondeu debaixo da cama. Sem querer, ele fez um aparelho de comunicação, e quem recebeu o chamado foi a Frota Estelar."

No final da primeira temporada da série, Saru está na cadeira de capitão até receber um sinal da Enterprise, comandada pelo Capitão Pike. Mas Saru continuará no comando? Jones faz mistério, mas dá pistas de que seu personagem será importante nos episódios inéditos.

"Nós vamos saber na próxima temporada mais sobre os Kelpiens, porque há sinais vermelhos no céu que guiam melhor a Discovery na exploração. E um desses sinais nos leva ao planeta dele. E é a primeira vez que ele volta desde quando deixou seu povo para se juntar à Frota Estelar. E vocês vão ver que ele não poderá ajudá-los por causa da Ordem Geral 1. É muito emocionante ver o passado de Saru. Ele é mais ambicioso do que pensamos".

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Com um pé no Brasil

Doug Jones virá pela primeira vez ao Brasil em fevereiro como estrela da "StarCon", a maior convenção brasileira de "Star Trek". Apesar de ainda não conhecer o país, o ator garante que está animado para encontrar seus fãs brasileiros, que aumentaram de forma impressionante após trabalhar como um ET em outra série de ficção: "Falling Skies", produção exibida entre 2011 e 2015 na TNT, com produção de Steven Spielberg, que retratava um ataque alienígena na Terra.

"O mundo está menor agora, então eu comecei a ter muitos fãs do Brasil quando estava em 'Falling Skies', interpretando Cochise [veja foto acima]. Foi por causa dela que comecei a ter contato com os brasileiros, e não sabia que a série tinha tantos fãs no Brasil".

Mas, mesmo de forma indireta, o norte-americano acabou tendo contato com o Brasil fora das redes sociais após viver uma criatura considerada um Deus da Amazônia em "A Forma da Água".

"Aqui nos Estados Unidos, a América do Sul tem muitos mistérios para nós, porque têm plantas e animais exóticos que você não encontra em nenhum lugar do mundo. E interpretar uma criatura daí foi maravilhoso. Quando fizeram a referência de que eu era adorado como um Deus do rio Amazonas, eu fique muito animado. E me deu mais uma ligação com esse povo maravilhoso no Brasil".

A "StarCon" acontece no dia 2 de fevereiro no teatro Eva Wilma, em São Paulo, das 9h às 20h.

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