Uma história daquelas

Kathy Griffin causou controvérsia com foto ao lado de máscara de Trump; ao UOL, ela conta o que veio depois

Beatriz Amendola Do UOL, em São Paulo

Kathy Griffin não se surpreende ao ouvir que, no Brasil, um grupo de humoristas foi alvo de um ataque a bomba e quase teve um especial de Natal judicialmente censurado por retratar um Jesus Cristo homossexual. A comediante de 59 anos, afinal, há quase três anos lida com ataques e ameaças por ter divulgado uma foto em que aparece segurando uma máscara do presidente norte-americano Donald Trump, como uma cabeça decapitada.

"Vou ser honesta, e espero não alienar os fãs que ainda tenho. Mas nós, americanos, não somos muito bons em acompanhar notícias do resto do mundo. Eu acho que 99% dos americanos não sabe o quão perto estamos da situação do Brasil".

Após a imagem rodar o mundo, Griffin foi investigada e passou meses sendo detida nos aeroportos pelos quais viajava. Criticada por personalidades à esquerda e à direita, a humorista perdeu trabalhos e entrou para a lista de personae non gratae de Hollywood. Só foi voltar a atuar agora, com uma participação na segunda temporada da série You (Você). Mas isso não a derrubou: ela fez uma lucrativa turnê mundial que arrecadou US$ 4,4 milhões e lançou, com recursos próprios, o filme Kathy Griffin: A Hell of a Story, no qual relata o período turbulento pelo qual passou.

Em entrevista exclusiva ao UOL, Griffin fala sobre sua resistência contra Trump, a luta contra o machismo e a misoginia na comédia, e, entre outras coisas, como foi passar o Natal com a família Kardashian.

Michael Tullberg/Getty Images

Turbulência

Se você não conhece Kathy Griffin, prazer. Ela conquistou fama fazendo shows de stand-up no circuito de Los Angeles antes de migrar para a TV, onde participou de séries como Seinfeld, Um Maluco no Pedaço e Arquivo X, e emplacou vários especiais de comédia, entrando para o Guinness como a humorista que mais produziu no formato. Ela ainda carrega no currículo dois Emmys e um Grammy —este pelo álbum de comédia Calm Down Gurrl, lançado em 2013.

Seu humor ácido não poupa ninguém, mas tem como principais alvos as outras celebridades, o que lhe rendeu algumas dores de cabeça ao longo dos anos. "Eu escolhi ser o tipo de comediante que alguns podem classificar como chocante, mas espero ser mais engraçada do que qualquer coisa", diz.

Reprodução/Instagram

Sua vida só foi virar de ponta cabeça, no entanto, no dia 30 de maio de 2017, quando a fatídica foto tirada por Tyler Shields foi divulgada. A repercussão foi rápida, e em poucas horas a imagem se tornou assunto global, em um processo que foi acelerado após Trump tuitar dizendo que a comediante "deveria se envergonhar".

Griffin perdeu contratos publicitários, viu sua turnê americana ser cancelada e perdeu o posto de apresentadora da tradicional transmissão de Ano Novo da CNN, que comandava desde 2009. Mas foi só o começo: segundo a humorista, ela se tornou alvo de duas investigações por parte do Serviço Secreto e do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, sob suspeita de conspirar para assassinar o presidente. Caso fosse considerada culpada, ela poderia ser condenada à prisão perpétua. À mídia americana, nenhum dos dois órgãos comentou sobre o assunto.

Griffin ainda diz que chegou a passar dois meses na "no fly list", que impede o embarque de suspeitos em aeroportos americanos. Os efeitos disso foram sentidos bem depois, fazendo com que ela fosse detida nas imigrações de todos os aeroportos pelos quais passou com sua turnê internacional. O suplício está retratado em A Hell of a Story, em momentos em que a atriz chega a chorar de exaustão diante das dificuldades de transitar de um país a outro.

"Eu fico muito grata quando escuto americanos dizendo 'eu não sabia que isso podia acontecer'", conta. "Eu senti que era importante mostrar o que realmente acontece quando você é detida em cada aeroporto, quão exaustivo isso é, especialmente quando você tem uma apresentação naquela noite. E ao contrário do que muita gente vê no Facebook —que não é uma fonte de notícias— eles podem pegar seu celular e seu passaporte, e não precisam te explicar nada".

"Não sei se Obama se encontraria com Bolsonaro"

Griffin espera que sua história possa servir de alerta em tempos em que o fantasma da censura paira em vários lugares do mundo. "Temos que lidar com isso em tempo real. Se você não gosta da minha foto, tudo bem, mas não é ok você não entender que ela estava completamente coberta pela Primeira Emenda", afirma, referindo-se à Constituição americana, que assegura a liberdade de expressão e a liberdade religiosa.

Ela acredita que seu filme possa ressoar também no Brasil, que vem sofrendo com outras tentativas de censura institucional no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Além da decisão de um desembargador contra o Porta dos Fundos, derrubada pelo STF, editais voltados a produções LGBT foram cancelados e o secretário da Cultura, Roberto Alvim, usou trechos um discurso do oficial nazista Joseph Goebbels para pedir uma arte "heroica" e "nacional" —fato que levou a sua exoneração.

"Uma das razões pelas quais Bolsonaro está muito mais famoso aqui é porque nós não conseguimos acreditar que Trump está abraçando esse cara", diz Griffin, antes de criticar o presidente americano pelo ataque que matou o general iraniano Qassim Suleimani.

"Não conseguimos acreditar que ele está abraçando [o presidente filipino] Duterte, e obviamente, não conseguimos acreditar que ele tirou uma foto com [o líder norte-coreano] Kim Jong-un, mas não conseguiu abrir um canal para conversar com [o presidente] Rouhani ou o Líder Supremo do Irã antes desse ataque, que, só para você saber, a maioria da população americana acredita que foi uma decisão muito, muito ruim para o país. Nenhum de nós está dizendo que Suleimani é um herói. Mas somos um país que, antes disso, tivemos Barack Obama. E eu não sei se Obama sequer se encontraria com Bolsonaro. Acho que fomos mimados por oito anos."

A humorista admite que não pretendia ser tão séria no papo com o UOL, mas reconhece que o momento é difícil. "Normalmente, eu tentaria te fazer rir durante meia hora, mas em termos realistas, é uma época em que eu, como comediante, tento andar na linha entre manter meus braços erguidos, com a atitude de 'eu venci o presidente dos Estados Unidos, o pior da história, alvo de um processo de impeachment', e a sensação de que não estou fora do radar deles. Eu não acho que eles terminaram comigo. Vocês, brasileiros, têm uma experiência real com isso que os americanos, na minha opinião, ainda não aceitaram."

Gregg DeGuire/Getty Images for Str8UpGayPorn Awards Gregg DeGuire/Getty Images for Str8UpGayPorn Awards
Reprodução/Instagram

Natal Kardashian

Ao contrário do que poderia sugerir sua declaração, o humor de Kathy Griffin apareceria várias vezes ao longo da entrevista. Há, como de se esperar, tiradas ácidas contra Trump e seus apoiadores. Ele, "not exactly the sharpest pencil in the box" (algo como "não o mais esperto da turma"); os segundos, "poderiam ser parte daquele esquema das faculdades com a Felicity Huffman e a tia Becky" —referência ao escândalo de pais famosos que pagavam para colocar seus filhos em universidades de elite.

Mas a comediante também se diverte com a premiação de pornô gay que apresentaria naquele fim de semana —"só os títulos são impagáveis. Poderia ficar lá só lendo os títulos, e os nomes dos atores, que não são exatamente aqueles com que eles nasceram, se é que você me entende"— e ao lembrar o Natal que passou com o clã Kardashian (ela é amiga da matriarca Kris Jenner).

Ela garante que poderia falar ininterruptamente por três horas sobre o evento. "Khloe estava vestida com uma peça dourada, de paetês", recorda. "Vou dizer que era um vestido, mas na verdade era uma estrutura; Kourtney andou até mim e eu disse, na cara dela 'Kourtney Kardashian, o que você faz? Você tem algum talento?' E, Deus a abençoe, ela só riu".

O grande destaque, porém, era Kim, a mais famosa das irmãs. "Kim trouxe o fotógrafo dela, Pierre, que estava com essa luz especial que ele segurava sobre o rosto dela. E ela passou a festa toda dizendo 'Pierre, Pierre!' Isso é engraçado pra c****, desculpa".

Griffin tem plena consciência de que, no momento, ela caminha por dois mundos. "Apesar de eu estar no campo político agora, eu nunca vou parar de chamar as Kardashian de 'vadias imundas', e digo isso carinhosamente. E, vou te contar, Kim estava ótima naquelas fotos, ou Pierre teria sido demitido bem rápido".

Eu nunca vou perder de vista o meu principal objetivo, que é fazer as pessoas rirem. Mas eu também não vou ficar quieta

Kathy Griffin

Randy Shropshire/Getty Images for PEN America Randy Shropshire/Getty Images for PEN America

De frente com o machismo

Ficar quieta nunca foi o forte de Griffin, que teve de lidar desde cedo com o machismo na comédia. "É a minha piada pesada: eu era Time's Up antes do Time's Up; eu era #MeToo antes do #MeToo", diz, em referência aos movimentos anti-assédio e pró-igualdade de gênero que tomaram Hollywood nos últimos anos.

Nos anos 1990, quando pouco se falava em igualdade salarial, Griffin teve de interpelar diretamente o chefe da Warner Bros., Peter Ross, para pedir um aumento por seu trabalho na série Suddenly Susan. Ela interpretava Vicki, uma colega da protagonista vivida por Brooke Shields.

"Eu estava ganhando um quinto do salário de um homem do elenco, que usava drogas pesadas abertamente", conta. "Eu fui negociar um aumento sozinha, porque meus agentes tinham medo. Eu liguei para Ross, a quem já conhecia um pouco, e disse que queria discutir uma ideia de piada com ele. Eu fui ao escritório dele e disse que não iria embora enquanto ele não me desse um aumento. Ele tentou me dissuadir brincando, mas eu saí daquela sala com um aumento."

As batalhas contra o sexismo, no entanto, não são poucas. "Já aconteceu de um câmera esfregar o pênis em mim durante as filmagens de um longa; e um agente da CAA, a maior agência do mercado, gritou comigo em uma ligação porque eu discordei dele, isso cinco anos atrás. Ele falava que eu nunca ia trabalhar de novo, que ia ligar para os executivos para que eles nunca mais trabalhassem comigo".

Mas Griffin não é de meias palavras. Um dia antes da conversa com o UOL, revela, ela mandou um e-mail para Jeff Zucker, o presidente da CNN, dizendo que ele era "estúpido demais" para comandar a emissora. Até o momento, ela não havia tido retorno. "Mas tenho certeza que ele está pensando em uma resposta educada", acrescenta.

A postura, avalia, é parte do que a colocou em maus lençóis em Hollywood.

"Sendo conhecida como alguém que —e digo isso carinhosamente— vai sobreviver ao apocalipse com as baratas, acho que paguei um preço."

Chelsea Guglielmino/Getty Images

A volta

Prestes a completar três anos da foto controversa, Kathy Griffin ainda é tratada por parte do público como uma criminosa. "Há muitas pessoas que insistem que eu realmente decapitei o Trump. Eu não fiz faculdade de Medicina, mas tenho certeza de que isso não passaria em um teste de senso comum. É desanimador."

Já para os executivos de Hollywood —ou "os homens que assinam os cheques, já que não há nenhuma mulher que possa realmente aprovar um projeto", diz ela— a comediante é encarada como um risco. "Acho que eles ainda têm medo do tuíte do Trump, e isso é difícil para mim, porque são homens que agem como durões, estufam os peitos, jogam golfe, estão no clube do bolinha, é um mundo totalmente diferente. E quando eu digo que eu sou apenas eu e sobrevivi ao tuíte do Trump, eles me olham como se eu tivesse um vírus".

Griffin conta que um agente bem conhecido no meio chegou a lhe dizer que não a representaria, mas que ela "será uma heroína nos livros de História". "Eu respondi 'bom, me represente quando eu estiver morta então. Minha imagem pode valer um bom dinheiro'".

A participação na série Você, exibida pela Netflix, só veio após ela entrar em contato direto com o showrunner Greg Berlanti no Twitter. "Eu nem o conheço. Eu mandei uma mensagem para ele e outros 20 produtores executivos. Não vou dizer os outros nomes, mas ele foi o único que me respondeu. Eu implorei: 'posso ter cinco falas ou alguma coisa?' Os americanos precisam parar de achar que eu sou um membro do Isis, pelo amor de Deus, é uma loucura. E foi ótimo. Só de ter uma pequena participação já ajudou".

Nos últimos meses, houve outros avanços: Griffin viu A Hell of a Story chegar a vários países por meio de serviços de streaming como Amazon Prime Video e Google Play (no Brasil, ele pode ser acessado pelo Vimeo on Demand) e voltou a fazer reuniões profissionais.

"Nada deu frutos ainda, então estou um pouco cética. Mas como minha querida amiga Gloria Vanderbilt costumava dizer, sua vida pode mudar em um telefonema. Então, sou otimista nesse sentido", diz. Ela pretende fazer uma nova turnê, quando for a hora certa, e acredita que a situação possa melhorar quando as pessoas se cansarem de Trump ou quando ele deixar o cargo. Afinal, 2020 é ano de eleição presidencial nos Estados Unidos.

"Eu vou continuar falando verdades na cara do poder, mas quero sempre lembrar as pessoas que eu entendo que meu trabalho é, antes de tudo, ser engraçada. E é isso que eu realmente quero fazer"

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