De quem é a vez?

Como os modernos jogos de tabuleiro venceram a estagnação no Brasil e têm se tornado pop

Osmar Portilho Do UOL, em São Paulo Osmar Portilho/UOL

Jogue o dado e ande o número de casinhas. Gire a roleta e faça o que a carta manda. Esqueça o formato antigo dos jogos de tabuleiro. As prateleiras que abrigam os clássicos War, Banco Imobiliário e Jogo da Vida hoje disputam espaço com títulos modernos como Dixit, Mysterium, Azul, Splendor, Zombicide e uma lista enorme de títulos que seduzem pelas dinâmicas diferentes e pela sofisticação de sua produção.

Só em 2018 foram lançados mais de 5.000 jogos de tabuleiro originais em todo o mundo, sendo que 313 deles também tiveram versões brasileiras, segundo dados do site Boardgame Geek. Na plataforma de financiamento coletivo Kickstarter, a arrecadação colaborativa de fundos para criação de novos títulos no ano passado bateu a marca de US$ 27,3 milhões e superou as campanhas dos criadores de videogames, que ficaram na marca de US$ 15,8 milhões.

O aquecimento do setor, movimentado pelo público, é também celebrado pelo mercado, que enxerga uma oportunidade de abastecer um nicho que evoluiu em diversos países, mas ficou congelado por aqui com uma dúzia de jogos.

Yasmin Passos/Galápagos Jogos
Yasmin Passos/Divulgação

"No mundo, os jogos continuaram evoluindo. No Brasil, não"

Foi morando na Austrália que o engenheiro brasileiro Yuri Fang descobriu um vasto -- e moderno -- mercado de jogos de tabuleiro. Ao voltar para o Brasil, decidiu investir no segmento, mas o embrião do seu projeto usava jogos para produzir soluções corporativas, principalmente ligadas ao setor de recursos humanos. Nascia ali a Galápagos Jogos.

O passo seguinte foi partir para a curadoria de distribuição de jogos, tanto nacionais quanto internacionais, que ele e os sócios achassem interessantes e pudessem ser lançados de maneira mais sofisticada por aqui. "No mundo, os jogos continuaram evoluindo. No Brasil, não", diz Yuri.

Mas o cenário está mudando. "Conseguimos ajudar bastante no crescimento do mercado. Já vendemos 1 milhão de unidades de produtos e crescemos 250% nos últimos cinco anos. Estamos tentando mostrar que jogar é uma coisa muito legal".

Os clássicos seguem firmes e fortes nas prateleiras, mas começam a dividir espaço com títulos como Dixit, Azul e Mysterium. Propostas novas, imersivas e de mecanismos completamente diferentes do simples fato de jogar um dado ou girar uma roleta. 

O brasileiro tem perfil de jogador. A gente é competitivo, nosso ambiente faz a gente lutar pra sobreviver. Adquirimos um aspecto de jogar talvez maior que de outros países.

Yasmin Passos/Divulgação Yasmin Passos/Divulgação

Por onde começar?

  • Zombicide

    Um jogo cooperativo e de sobrevivência onde os jogadores estão em uma cidade infestada por zumbis. O tabuleiro, que pode ser montado de diversas maneiras, oferece armas e habilidades para que os jogadores se tornem mais fortes e colaborem para eliminar suas ameças. Os mapas são modulares e oferecem dez cenários.

    Imagem: Divulgação
  • Dixit

    Neste jogo, os participantes se tornam contadores de histórias e precisam desenvolver frases para definir os surreais - e belos - desenhos de suas cartas de maneira sutil. Cabe aos outros jogadores tentar adivinhar a carta do narrador e escolher uma outra imagem que também corresponda à definição do jogador da vez.

    Imagem: Divulgação
  • Mysterium

    Cheio de climas e muito suspense -- o jogo oferece até uma playlist de músicas para se ouvir durante a partida --, Mysterium simula uma comunicação entre um fantasma e médiuns feita através de cartas com desenhos subjetivos e atividades para desvendar um assassinato acontecido na década de 20.

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  • Dobble

    Um simples, mas contagiante jogo de cartas que pode ter de 2 a 8 pessoas em 5 modos dinâmicos. Todas as cartas possuem diversos desenhos, mas sempre um ícone em comum. A partir daí, os jogadores podem realizar partidas de descarte em velocidade, no estilo "rouba monte" ou de diversas maneiras.

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  • When I Dream

    Um dos jogadores fica vendado para ser o Sonhador. Os outros participantes precisam dar dicas para ele de qual palavra está na próxima carta. No entanto, enquanto as fadas dão dicas para ajudar, os bichos-papões fazem de tudo para dar pistas erradas e atrapalhar na concepção da narrativa, resultando numa confusão divertida e criativa.

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O preço aumentou, mas a qualidade também

O preço de um jogo de tabuleiro tradicional como Jogo da Vida e Banco Imobiliário dificilmente ultrapassa o valor de R$ 100. No caso dos chamados "jogos modernos", há um grau de sofisticação que até então era pouco conhecido no Brasil.

Em Dixit, por exemplo, temos cartas com ilustrações que lembram pinturas surreais impressas em alta resolução. Em Azul, as peças imitam as peças de cerâmica em miniatura com cores vibrantes e desenhos detalhados, o que contribuiu para o prêmio de jogo do ano da Spiel des Jahres, considerado o Oscar dos jogos de tabuleiros, ao seu criador, Michael Kiesling.

A preocupação com detalhes e sofisticação na escolha de materiais também tem seu preço. Ao contrário dos jogos licenciados por empresas tradicionais de jogos, estes títulos ocasionalmente são vendidos por mais de R$ 200 e podem atingir até valores na casa dos R$ 500.

"Há muito cuidado na produção. Estamos falando de experiência e ela tem que ser a melhor possível. É difícil comparar um jogo de R$ 80 e outro de R$ 250 e falar que um é muito mais caro que o outro. É algo completamente diferente um do outro", explica Yuri Fang, da Galápagos.

No começo se falava muito que o jogo era caro. Isso saiu de cena. Quando o cara pega um jogo, se ele não compra de primeira, na próxima vez ele muda a percepção.

César Oliveira, sócio da loja Pingo no i

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Mundo nerd mais aberto

Por muito tempo o termo jogos de tabuleiro no Brasil remeteu somente a dois nichos: jogos clássicos familiares ou o ambiente nerd dos heavy gamers de RPG. Até então pouco explorado por aqui, o setor dos jogos casuais tem se aquecido justamente por mostrar uma dinâmica diferente no ato de se sentar com amigos e disputar uma partida.

A gente quer atender famílias, proporcionar diversão e que os adultos brinquem sem esse estereótipo de 'preciso saber todos os filmes do Star Wars pra jogar um jogo de tabuleiro'

Essa é a ideia de César Oliveira, um dos sócios da Pingo no i. A loja fica na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, inusitadamente incrustada entre bares e botecos tradicionais da região. 

Com inúmeros títulos expostos em suas prateleiras, o local comandado por César e Juliane Pimentel tem mesas no salão e vários jogos abertos para quem quiser experimentar. Para eles, o aquecimento do mercado vem junto com a acessibilidade aos títulos modernos, daí o intuito de criar na loja um ambiente confortável e receptivo.

"Eu tinha muita relutância em entrar em casas tipo hobby store [para jogar]. Por ser mulher, nesse ambiente você entra e é devorada. Ou você é poser ou você quer chamar atenção de alguém, mas nunca é porque quer conhecer o produto. O mundo nerd é muito fechado. A pessoa que não joga não se sente confortável de entrar e sentar numa mesa com desconhecidos para jogar", diz Juliane.

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Grandes franquias, grandes negócios

Uma das táticas para atrair novos públicos é o licenciamento de grandes franquias para a adaptação de jogos. Mas isso vai além de escolher uma série de sucesso e lançar uma versão temática de Banco Imobiliário, por exemplo. Ao longo dos últimos anos, grandes títulos do mundo geek como "Star Wars" ou até da cultura pop como "Breaking Bad" ganharam jogos com mecânicas mais próximas de seus enredos.

"Grandes franquias do cinema, quadrinhos e séries estão recebendo versões analógicas. Já sei o que você está pensando: 'um Banco Imobiliário de Game of Thrones'", brinca o youtuber Jack Explicador. 

"Com certeza não é nada parecido com isso. Por exemplo, Star Wars Rebellion é um jogo extremamente temático onde cada jogador vai poder reviver estratégias e táticas do Império ou dos Rebeldes em um conflito épico, com direito a batalhas com a Estrela da Morte, sabotagens em sistemas galáticos e até influência da Força na interação dos personagens".

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Instagram/Reprodução

Gameplay offline

Mesmo sendo um jogo offline, o nicho dos tabuleiros não ficou de fora do conteúdo produzido para plataformas como YouTube, Facebook e Twitch. São diversos canais que transmitem partidas e dão dicas, tutoriais e notícias sobre o nicho.

No canal Meeple TV, hoje com quase 30 mil inscritos, Jack Explicador faz lives onde disputa partidas e conversa com seus seguidores sobre os jogos.

"Eu trabalho com cinema e, quando o YouTube se firmou, apostei no potencial de divulgação para trazer mais gente para o hobby. A Galápagos Jogos estava surgindo no mercado, trazendo seu primeiro grande sucesso, Zombicide. Então saí de trás das câmeras e criei o Jack Explicador, um apelido de juventude da época em que reunia os amigos e ensinava as regras dos jogos que trazia".

Embora o canal ainda não seja sua principal fonte de renda, ele vê com bons olhos o crescimento do mercado de tabuleiros.

As editoras estão surgindo e trazendo uma enxurrada de lançamentos todos os meses. Um mercado que sobreviveu durante mais de 30 anos apenas com War, Detetive e Banco Imobiliário, hoje recebe cerca de 300 novos jogos todos os anos.

Como a interatividade dos jogos é primordial, o canal da Meeple TV também privilegia esta prática. "O público gosta de ver a dinâmica dos jogos na mesa, afinal é por isso que estamos aqui, interação. Chamo alguns amigos e faço partidas ao vivo com a galera participando pelo chat", conta Jack, que, além do canal, também tem um podcast chamado Meeple Maniacs.

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A cura através dos jogos

A modernidade dos jogos mais recentes atraiu atenção também da área da saúde. A psicopedagoga Rebeca Lescher Nogueira de Oliveira, por exemplo, descobriu nos jogos uma ferramenta importante para o desenvolvimento de seus alunos com dificuldade de aprendizagem ou déficit de atenção.

"Estudo profundamente cada jogo e desenvolvo estratégias para estimular as habilidades de linguagem, atenção, memória, as funções executivas e também o raciocínio matemático, leitura e escrita", explica. "Em geral ninguém quer fazer a correção de provas ou rever seus erros escolares, mas com os jogos sempre queremos jogar novamente para descobrir onde erramos".

No campo da neurociência, a diferença está na maneira em que as dinâmicas do jogo são aplicadas com os pacientes.

"Para a intervenção utilizo situações-problemas para cada jogo. Na solução desses desafios, as crianças percebem sua competência para solucionar questões. Muitos chegam desacreditados, se achando burros e quando solucionam e desenvolvem estratégias eficientes para ganhar um jogo, mudam de atitude e começam a confiar em suas inteligências".

Yasmin Passos

O objetivo agora é cativar as crianças

Os jogos de tabuleiros são naturalmente relacionados com ambientes familiares e atividades entre pais e filhos. Mas os títulos modernos têm se estabelecido entre o público mais adulto, enquanto a indústria, como explica Yuri, tenta atrair os mais jovens para esta safra. Naturalmente, a competição nesta faixa etária é ferrenha na disputa de atenção com smartphones, videogames e tablets.

"Estamos focados em ampliar o público. Queremos atingir mais jovens que eventualmente nunca jogaram um jogo de tabuleiro. Isso é até bizarro pra gente. Eles cresceram direto no digital e isso virou um 'drive' nosso muito importante. Queremos atingir jovem e a criança", afirma Yuri.

Agora é a sua vez.

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