O som dos morros

A chegada do Espaço Favela ao Rock in Rio 2019 fez barulho (para o bem e para o mal)

Renata Nogueira Do UOL, no Rio Renan Olivetti/Divulgação

Casinhas uma sobre a outra, gatos e cachorros, uma quadrinha de basquete, varal de roupa penduradas nas janelas, caixas d'água e pipas voando. Você não está em uma comunidade. É tudo de mentirinha: você está dentro do Parque Olímpico na Barra da Tijuca, no Rio. E para entrar ali foi preciso pagar mais de R$ 500 por um ingresso.

A chegada do Espaço Favela ao Rock in Rio 2019 fez barulho. Literalmente. Meses antes, o rapper Djonga já cantava na música Ladrão:

O mais perto que cês chegaram do morro é no palco favela do Rock In Rio

Um dia antes da abertura dos portões do evento ao público, outra surpresa: um vídeo que mostrava barulho de helicóptero sobrevoando a favela cenográfica do festival também viralizou de forma negativa. A ideia de levar o ambiente, que é a realidade de muitos cariocas, para dentro de um dos maiores festivais de música do mundo pode não ter agradado aqueles que estavam de fora.

Mas o que pensa quem convive com esse som nos morros?

Divulgação/Rock in Rio

A cara da comunidade

Essa é a primeira vez que o Rock in Rio faz o Espaço Favela dentro do festival. O palco é mais um dos espaços temáticos que ganham cada vez mais força a cada edição e, se depender do público, deve continuar em 2021, mesmo com todo o barulho prévio.

Assim como as favelas, as casinhas que representam a moradia da parte menos abastada da população do Rio de Janeiro —e que servem de cenário para artistas oriundos de comunidades— ficam um pouco longe do palco principal. A caminhada do palco Mundo até o local pode durar até 10 minutos, dependendo da lotação do evento. Para chegar lá, você vai passar por ativações de grandes marcas que dão cada vez mais sua cara ao evento.

Coca-Cola, Itaú, Natura, Heineken, Sky e Doritos são apenas alguns dos patrocinadores com camarotes, palcos ou ativações próprias no caminho para o Espaço Favela. Chegando lá, a única marca que se destaca é mesmo a do Rock in Rio, que montou uma lojinha exclusiva de souvenires com camisetas e bonés vendidos a R$ 80 e R$ 70 respectivamente. Enquanto isso, o Nós do Morro, grupo que mais vai se apresentar no Espaço, sofre com a falta de patrocínio.

A programação do palco também não ganha tanto destaque como os dois principais, que têm seus shows exibidos na TV o tempo todo. Mas o Multishow, emissora responsável pela transmissão, designou uma equipe que faz entradas na programação, além de lives no Facebook, Twitter e YouTube. Curiosamente, é lá também que rolaram fortes manifestações e discursos políticos, como o pedido de liberdade para o DJ Rennan da Penha feito pelo Heavy Baile e os gritos contra os racistas na Batalha de Slam. Mas só quem estava presente viu.

E só no Espaço Favela você vai ter a sorte de ter um contato mais íntimo com o artista. Malía, cantora criada na Cidade de Deus, desceu do palco e cantou no meio do público no fim do seu show. Um momento caloroso na noite mais fria do Rock in Rio.

Outra característica única do Espaço Favela é seu serviço de restaurante. Instalados em bares cenográficos com estufas de vidro que também simulam os espaços da favela, eles oferecem quitutes por preços um pouco mais baratos do que a média do festival.

Divulgação/Rock in Rio Divulgação/Rock in Rio

Foi uma boa ideia trazer isso para as pessoas que não conhecem a realidade dentro da comunidade. Eu fui criado na Vila Vintém em Realengo, e realmente se parece. A maioria das casas na comunidade tá no tijolo, mas as pessoas pensam que não tem casa bem cuidada na comunidade, e tem algumas pintadinhas assim. Muitas vezes as pessoas têm boa condição, mas gostam de morar ali. Eu só saí de lá porque estava muito perigoso mesmo para a gente que mora lá. Gostei muito, está aprovadíssimo.

Jonas Pereira, vendedor ambulante morador de Duque de Caxias

Divulgação/Rock in Rio Divulgação/Rock in Rio

A gente precisa brigar e ocupar espaços também. Aceitamos o convite [do Rock in Rio] porque é importante estar aqui. É uma favela gourmetizada, estereotipada. Mas a gente entende que é um festival mainstream e que precisa canalizar informações para o público. Aqui não tem público da favela, não pertence a essa classe social. E é para a gente trazer o funk, que é nosso instrumento de trabalho. Nem todo mundo que é do Heavy Baile nasceu e cresceu dentro da favela, mas a maioria de nós está próximo dali. E a gente traz muito isso no nosso show, na nossa arte, na nossa construção lógica enquanto grupo.

Jessica Ginga, bailarina do coletivo Heavy Baile

Divulgação/Rock in Rio Divulgação/Rock in Rio

Trazer o Nós do Morro, esse trabalho, esse protesto para o Rock in Rio, eu achei uma iniciativa muito boa porque vai abranger as pessoas da zona sul, da Baixada, de outros Estados. É a verdadeira favela no Rock in Rio. A favela tá aqui. Parece que tiraram um pedacinho da favela, recortaram e colocaram aqui. A comunidade é isso. Coloca um pedacinho de corda para fora e pendura as roupas. Lá no Vidigal mesmo tem uma quadra no alto do morro. Tem essas coisas todas e é o ponto mais lindo, você vê o Rio de Janeiro inteiro.

Karina Praxedes, bombeira civil e ex-atriz do Nós do Morro, moradora da Baixada Fluminense

Divulgação/Rock in Rio Divulgação/Rock in Rio

Barulho que incomoda

Gravado durante o ensaio geral do Rock in Rio, o vídeo de poucos segundos com o barulho de helicóptero sobre a favela cenográfica começou a circular por grupos de WhatsApp e nas redes sociais. Era uma apresentação do Grupo Nós do Morro, que até o final do festival, no dia 6 de outubro, terá feito 21 shows no Espaço Favela, três em cada um dos sete dias de evento.

O espetáculo conta com 30 talentos entre dançarinos, atores e artistas plásticos: 15 do grupo Nós do Morro e outros 15 selecionados por Guti Fraga, que criou o projeto há 33 anos, em outras comunidades do Rio. A representatividade de quase todas as favelas aparece nas camisetas usadas pelos artistas durante a apresentação com os nomes dos morros.

"Parece até censura", lamenta o diretor sobre a cena do helicóptero, que havia sido pensada por eles há meses durante a produção para o espetáculo exclusivo para o Rock in Rio e foi retirada após reações negativas. A cena em questão abria o espetáculo e trazia uma bailarina que se abaixava ao ouvir o barulho assustador do helicóptero, uma realidade diária nos morros do Rio.

"Essa bailarina representa o trabalhador, a dona de casa, o estudante, os artistas daquele lugar. Que não são mira, querem viver. E esse som incomoda. A arte não explica e é lindo. Cada um faz sua interpretação", comenta Fátima Domingues, que assina a direção do projeto com Guti e Johayne Hildefonso.

Daniel Ramalho/Divulgação Daniel Ramalho/Divulgação

Para Johyane Hildefonso, diretor do Nós do Morro, as críticas vindas de fora do Rock in Rio não incomodaram. "Essas pessoas que falaram não sabem da minha trajetória, da Fátima, do Guti. Eu trabalho dentro de favela há mais de 30 anos e ninguém sabe o que a gente já viveu e viu. Só fico triste pela galera dos artistas, atores, que conhecem o trabalho do Nós do Morro e criticaram. Hoje estamos há um ano e meio sem patrocínio e isso ninguém fala", lamenta ele.

Para Fátima, as críticas foram infundadas. "Eu tenho fala. Eu não estou morando no Leblon e fui convidada para dirigir. Eu vivo ali, na favela. Mas também temos que respeitar quem não curtiu, quem pensou outra coisa. É normal. Como artista também não queremos isso. É bom que falamos disso, é necessário. Não quero esmagar ninguém, pode falar. É uma obra."

Fátima diz que todo espaço é válido. "Poderíamos estar na Maré, em Macaé, em Londres, no Municipal. Mas estamos no Rock in Rio. Somos potentes e queremos conquistar o mundo. Nosso lugar não é limitado", diz ela, que acrescenta:

Nós somos muito mais e foi dado um palco para a gente. Estamos espalhados por aí, não somos zoológico para ninguém visitar. Somos um palco como qualquer outro. Temos o nosso espaço, e é bonito.

O Nós do Morro volta a se apresentar no Espaço Favela no segundo fim de semana do Rock in Rio, em 3, 4, 5 e 6 de outubro com três shows diários às 14h50, 17h30 e 21h40.

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