Três meses em três horas

O dia a dia e a ansiedade dos ARMYs que estão há 90 dias acampados no Allianz Parque à espera do BTS

Renata Nogueira Do UOL, em São Paulo Mariana Pekin/UOL

A espera de mais de mil fãs de BTS que se revezam em um acampamento nos arredores do Allianz Parque acaba no sábado. É quando o maior fenômeno do k-pop se apresenta pela primeira vez em um estádio no Brasil, repetindo a dose no domingo. É a quarta e mais aguardada visita do grupo sul-coreano ao nosso país.

Alguns integrantes da ARMY - nome oficial da fanbase - estão acampando desde 19 de fevereiro, quando os shows foram anunciados oficialmente. Outros vieram depois, mas sempre seguindo regras rígidas para manter a ordem naquela comunidade que se dividiu entre os portões do estádio e uma praça. O objetivo é um só: garantir o melhor lugar possível para ver de perto RM, Jin, Suga, J-Hope, Jimin, V e Jung Kook.

São cerca de 20 barracas identificadas por número e com até 60 integrantes cada. O acampamento nunca está cheio, pois funciona no sistema de revezamento. Assim, é possível continuar trabalhando ou estudando e contabilizar horas no tempo livre. Quanto mais horas, melhor o lugar na fila. Dormir no local multiplica os pontos, mas só é permitido aos maiores de 18 anos. Quem controla o sistema são as ADMs de cada barraca. O esforço de 90 dias do exército de fãs será recompensado com dois shows de quase 3 horas cada com muita música, dança e efeitos especiais.

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"Descobri que estou viva"

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Os dedos cruzados dizem tudo. O símbolo forma um pequeno coração e é um jeito de demonstrar amor na Coreia do Sul. O mesmo amor que levou uma avó a acampar pela primeira vez em seus 66 anos de vida. Maria Ibide está desde 20 de fevereiro no acampamento para garantir o melhor lugar para ela e para a neta Letícia, de 13 anos.

Estava temerosa por ser uma senhora no meio dos jovens, mas eles me aceitaram muito bem. Todos me tratam bem, aceitam meus limites, não deixam eu pegar peso. Mas eu faço tudo o que eles fazem. Durmo, enfrento chuva, sol, frio. Estou aqui.

A jornada é dupla para a vovó, que volta poucas vezes para sua casa, na Casa Verde, bairro da zona norte de São Paulo. "Venho de terça, quarta e quinta-feira. Chego aqui umas 16h, durmo, e saio no dia seguinte 9, 10 da noite. Venho de sábado e domingo também para fazer o da minha neta. Venho pra mim e pra ela. Aqui é tudo organizado. Revezamos para tudo."

Tanto esforço tem explicação. A ajuda que o BTS deu para a neta sair da depressão. "Ela é louca pelo Jung Kook. As músicas dele ajudaram a curar a depressão. Por isso que eu gosto deles. Passam mensagens de autoestima. De que você pode, consegue. Que pode ser difícil, mas tudo passa. Além das mensagens de amizade e amor"

Tantos anos de convivência transformaram a aposentada em mais uma integrante da ARMY. "Ouvi 'Spring Day', gostei da música, e comecei a acompanhar. Antes para mim era modinha, mas quando você acompanha a carreira e entende a mensagem passa a gostar. Eles transmitem paz, transmitem amor. Uma velha misturada com um monte de jovens? Quer prova maior que isso de união."

Em 66 anos é a primeira vez que eu acampo na vida. E eu estou amando. Eu conheci muita gente bacana, todos com o mesmo intuito. Muitas histórias diferentes. E outra. Eu descobri que estou viva. Eu estava vivendo uma vida de rotina. Além disso, todo mundo se ajuda. Se alguém está triste, alguém vai lá e ajuda. Porque o objetivo de todo mundo aqui é o mesmo: ver o BTS. Se eu estiver viva até lá, já valeu. Mas pretendo ficar viva para contar a história.

R$ 4 e um sonho

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A estudante Estefanny Gregório, do Rio de Janeiro, se organizou para ir a São Paulo assim que soube do show do BTS. Comprou ingressos para os dois dias, garantiu passagens de ônibus com seu benefício estudantil e juntou um dinheirinho para gastar nos dias que passaria na cidadei. Mas a jovem de 17 anos não previu um problema familiar que abalaria toda a estrutura preparada para o show.

A minha sobrinha de 6 meses faleceu semana passada, eu não tive tempo nem de ter luto. Fui pra casa da minha irmã, participei do enterro, e só depois vim pra cá. Então o dinheiro foi todo embora. Eu tinha uma barraca, ia montar, mas ficou na casa da minha mãe. Ia ser mais R$ 40 para buscar lá e eu não tinha esse dinheiro.

Com os ingressos e passagens em mãos, restou a ela fazer um apelo na internet para as fãs que já estavam acampadas. "Disse que já tinha os ingressos, já tinha passagem, mas não tinha mais barraca pra ficar. Expliquei que sou do Rio, que perdi minha sobrinha e não tinha dinheiro nem pra comer e nem barraca." Uma das ADMs ficou tocada com a história de Estefanny e a adotou.

Ela então veio com o último dinheiro que tinha sobrado, suficiente para pagar a passagem de metrô entre o Tietê, onde chegou de ônibus, e a Barra Funda, estação mais próxima do Allianz Parque. "Vim do Rio com R$ 4 e sem telefone. Usei o dinheiro para pegar o metrô. Deu certo, estou aqui e estou comendo", garante.

Estefanny, que nunca tinha ido a São Paulo, fala sobre a experiência inédita. "Estou assustada com o clima, porque é bem frio. Eu sou do Rio, não tenho muita roupa de frio. Roupa de gente do Rio é mais short, blusa fina. Lá é muito calor. Tenho só um casaco fino e uma legging." O movimento nas ruas também assusta a acampada.

Passa andarilho, gente bêbada, gente xingando. Um cara passou de moto e gritou: 'que bobeira'. Tem gente que grita coisas muito mais ofensivas. Dizem que somos porcas, para caçar um emprego. Estão mais preocupados com a nossa vida do que a gente.

Acampamento até no aeroporto

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O show do BTS será a festa de 15 anos de Brenda, filha de Lidi Betania Santos, de Salvador. A baiana de 38 anos, que está desempregada, acionou toda a família para juntar a verba e levar a aniversariante e a filha mais nova, Rute, de 11 anos, para São Paulo. Só de ingressos e passagem para as três, foram R$ 3.850. Fora os gastos extras para passar uma semana inteira na cidade.

"Mãe faz de tudo para os filhos. Foi um pau danado eu desempregada para sair de Salvador e ainda trazer as duas. Os gastos triplicam. Mas vai valer a pena por minhas filhas", admite Lidi, que deixou as meninas na casa de um irmão e acampa sozinha para conseguir um bom lugar para elas no show.

"Fizemos uma vaquinha com toda a família e os amigos. Primeiro rolou uma campanha pelo Facebook, e as pessoas mais próximas da família foram depositando. Estamos nos programando desde que anunciaram, em fevereiro. Em março conseguimos a primeira parte do dinheiro e compramos as passagens. Mas eram da Avianca", relembra sobre o primeiro problema da viagem.

Pensa no estresse para chegar aqui. Tinha que ir de três em três dias no aeroporto de Salvador para saber como a gente viria para cá. Até então estava tudo cancelado. E o voo estava agendado para 18 de maio, justamente o dia em que a minha filha fez 15 anos. O voo foi cancelado e as meninas só choravam no aeroporto. Nos remanejaram para um voo que desceria em Congonhas e nós viemos.

Para garantir que chegaria com as filhas a São Paulo, Lidi resolveu ficar no aeroporto. "Chegamos lá quinta-feira sete da noite e ficamos até sábado 5 da manhã, quando embarcamos. Já acampamos desde o aeroporto de Salvador. Aqui é o nosso segundo acampamento."

O amor da família pelo BTS começou pela filha mais nova, de 11 anos, que contaminou a irmã mais velha, a mãe e até o pai, que apesar de ter bancado parte da viagem teve que ficar em Salvador por causa do trabalho. "Ele não é tão fã quanto a gente, mas vira e mexe está cantarolando no chuveiro, de tanto que a gente escuta em casa."

Para a mãe, o BTS é um bom exemplo para as filhas. "Eles não fazem apologia às drogas, não tem violência. Nos dias de hoje já é muita coisa", diz Lidi, que também se apaixonou pelos sul-coreanos.

"Quando escutei a música não entendia nada. Mas com a tradução vi que eles passam mensagens de amor próprio e coisas que deixam você pra cima. Então comecei a apoiar, pois tem muitos grupos de fora que você pega uma letra e não faz sentido. Mas as dos meninos são maravilhosas. Eles ensinam a se amar, a cultivar coisas boas, a ficar juntos. A união faz a força e foi isso que fez eu vir pra cá."

K-pop com sotaque espanhol

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Os dois shows do BTS em São Paulo serão os únicos da turnê "Love Yourself: Speak Yourself" na América Latina. Por isso, fãs de países vizinhos já estão em São Paulo para ver a apresentação dos sul-coreanos.

No dia em que a reportagem visitou o acampamento, encontramos argentinas e chilenas. Elas contaram que grupos da Bolívia, Uruguai, Paraguai e Peru estão a caminho do Brasil. Até mesmo uma fã da Venezuela, país que enfrenta a pior crise de sua história, estaria a caminho de São Paulo para ver o show de k-pop.

"Estamos hospedadas em um hostel a seis quadras daqui, mas decidimos ficar no acampamento para garantir um bom lugar na fila e ficar na grade. Já fiquei na grade do Monsta X duas vezes e também do Got7 e do Seventeen. Para esse, fui até o Chile", conta Lucía Torres, de 24 anos, em inglês fluente.

A argentina de Buenos Aires veio com a amiga María Luque, de 19 anos, aproveitando 10 dias de férias que tirou dos dois empregos que mantém em seu país natal. "Estou amando o Brasil. As meninas aqui estão sendo muito gentis com a gente desde que chegamos. Elas nos mostraram os arredores e estão cuidando da gente", conta.

No acampamento, outras meninas contam que estão ansiosas para conhecer um grupo de 38 bolivianas. O pai de uma delas veio ao Brasil em março para comprar os ingressos, mas parte do grupo que tentou vir dias antes do show teria ficado preso na fronteira com o Brasil. A chegada das meninas era esperada para sexta-feira.

"Estamos sem notícias, não sabemos se estão vindo de carro, de ônibus, de avião", conta uma das brasileiras que conheceu o boliviano na fila enquanto torcia para que as hermanas chegassem.

O que já rolou por lá...

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Ratos

Nas 3 horas em que a reportagem passou entre os acampados, apenas uma reclamação era unânime. Os ratos que aparecem todos os dias nas barracas. Os indesejados visitantes assustam quem chega ali. Outros estão acostumados com a presença deles. "Já somos amigos", brinca uma garota com uma camiseta do Mickey Mouse. Outra admite: "Nós que invadimos o ambiente deles, e não o contrário".

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Menores

O Conselho Tutelar aparece lá todos os dias movido por denúncias anônimas que chegam ao órgão público. "A denúncia é que menores de idade têm passado a noite aqui. Mas estamos fiscalizando e elas não dormem. Só que elas também não têm que ficar aqui. Pois tem escola, recreação e atividades obrigatórias", explica a conselheira Ermínia Alonso, do Conselho Tutelar da Lapa, o mais próximo do estádio.

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Denúncia

Os adultos acampados e alguns pais tiveram de se reunir e ir à Prefeitura de São Paulo. Tudo por causa de reclamações de moradores da região, incomodados com a presença deles nas ruas por tanto tempo. "Tivemos que explicar o que é o movimento e que ninguém está fazendo mal a ninguém. Que a gente só queria ver o BTS", conta a aposentada Maria Ibide, 66, conhecida no local como "vó".

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Chuvas

O grupo passou até agora ileso de assaltos, mas enfrentou um inimigo que não pode ser controlado: o clima. Em dias de chuva, as barracas alagam. Segundo relatos, a água já chegou até o joelho dos acampados, a maioria mulheres. Nos últimos dias, mais um problema. Impedidas pelo Allianz de levar as barracas para os portões, as fãs são obrigadas a revezar as noites entre o acampamento e as filas.

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