Topo

'Esse governo veio para destruir a cultura e o Brasil', diz cineasta

"A gente não sabia a que que esse governo vinha, agora a gente sabe", diz diretora do Festival de Cinema Brasileiro de Paris - Arquivo Pessoal
'A gente não sabia a que que esse governo vinha, agora a gente sabe', diz diretora do Festival de Cinema Brasileiro de Paris Imagem: Arquivo Pessoal

04/06/2020 08h41

O Festival de Cinema Brasileiro de Paris é o evento cultural sobre o Brasil mais antigo da França. Criado por Kátia Adler, ele existe desde 1998 e mesmo em anos de graves crises foi realizado.

Este ano, por causa da pandemia do novo coronavírus, o festival de cinema que deveria ocorrer inicialmente em abril no tradicional cinema Arlequim de Paris teve que ser adiado, mas não foi cancelado. A 22ª edição começou ontem e está sendo realizada pela primeira vez online.

A ideia inicial de Kátia Adler era adiar o evento até o fim da quarentena na França, mas com a decisão do governo francês de só reabrir as salas de cinema no final de junho, a edição presencial ficou impossível.

"Cancelar para mim era muito forte. Tem 22 anos que a gente faz. Como a gente tem a Jangada VOD, que já existe há um ano, decidimos fazer o festival online", conta a fundadora do festival e diretora da Associação Jangada que organiza o evento.

O Festival de Cinema de Paris acontece até 24 de junho na plataforma Jangada VOD. A programação original, que tinha 26 filmes, sendo sete longas de ficção em competição e cinco documentários inéditos, teve que ser alterada.

Os filmes que ainda não estrearam no Brasil não podem participar da edição digital, mas o lado positivo é que um número muito maior de filmes pode ser incluído e o festival online vai disponibilizar ao todo 50 obras. Mas a decisão foi difícil.

"Quando eu fui escrever meu texto comunicando a decisão, comecei a chorar. Eu me dei conta como seria difícil para mim não receber o público, não conversar, não apresentar os diretores que tinham se engajado a vir ao festival, comprando eles próprios as passagens porque a gente não tem verba este ano. A gente já estava fazendo um festival no limite total", ressalta a diretora.

O evento conta este ano apenas com um pequeno apoio da embaixada do Brasil na França.

Resistir para dar visibilidade à cultura brasileira na França

Há alguns anos, as verbas e o patrocínio para a realização do Festival de Cinema Brasileiro vêm diminuindo. Manter o evento é também uma decisão política para dar visibilidade na França ao cinema e à cultura brasileira, principalmente neste momento em que o setor está em perigo, salienta Kátia Adler.

"Eu não abro mão de fazer o festival, de continuar, de resistir a esse governo, a esse desmonte do Brasil. Essa resistência já era o (festival) físico, mas quando o físico por causa da pandemia não pôde acontecer, óbvio que essa resistência passa a ser online. Dar possibilidade ao público (francês) de assistir aos filmes brasileiros é essencial nesse momento", diz.

Em 2019, 160 filmes foram realizados no Brasil. Um número muito pequeno dessa produção chega aos cinemas franceses.

O objetivo do festival, que em anos anteriores conquistou um público de até quatro mil espectadores somente em Paris, é também que os produtores e distribuidores franceses comprem os direitos e programem as obras brasileiras em salas de todo o país.

A oferta online é uma concorrência, mas ao mesmo tempo potencializa o público.

A Jangada VOD tem 150 filmes em seu catálogo, legendados principalmente em francês, mas também em inglês e espanhol, e é a única plataforma do mundo exclusivamente de filmes brasileiros.

Ela foi lançada em abril de 2019 na França, e desde maio de 2020 pode ser também acessada em toda a Europa.

"Ano que vem espero que a gente volte fisicamente, mas também espero que a gente continue no online para dar possibilidade ao público da França e da Europa de ver os filmes", diz.

'Eu não abro mão de fazer o festival, de continuar, de resistir a esse governo, a esse desmonte do Brasil', diz Kátia Adler - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
'Eu não abro mão de fazer o festival, de continuar, de resistir a esse governo, a esse desmonte do Brasil', diz Kátia Adler
Imagem: Arquivo Pessoal

Bye Bye Brasil

O público não poderá votar como na edição tradicional, mas haverá lives com os diretores convidados. As novidades da programação digital foram os convites que Kátia Adler fez a Luciano Vidigal e ao documentarista Sérgio Bloch para participarem o evento.

Vidigal fez uma seleção de 12 filmes de cineastas jovens da comunidade carioca que precisam ser vistos.

"A gente vai fazer uma live com eles. É super importante para saber se eles têm acesso a financiamentos, como fizeram os filmes. Tem muita coisa para ser dita sobre esse Brasil dividido", anuncia.

A homenagem deste ano é para os 40 anos de lançamento do filme 'Bye Bye Brasil', de Cacá Diegues, que participará de uma live.

O longa, que estará disponível na plataforma, continua, na opinião de Kátia Adler, atual.

"Qando você olha para o Brasil hoje, você vê que esse filme é super atual, que o Brasil continua de uma certa maneira atrasado em muitas coisas".

Futuro incerto

A edição 2020 do Festival de Cinema Brasileiro de Paris, que custou cerca de 20 mil euros (cerca de R$ 113 mil), acontece, mas o futuro é incerto.

"A gente está em um momento inédito. Quando esse governo começou, a gente tinha um pouco de medo para a cultura. A gente não sabia a que que esse governo vinha, agora a gente sabe. Para mim, esse governo veio para destruir a cultura, veio para destruir o Brasil. Eu não sei quantos filmes serão feitos, eu não sei se a gente vai continuar fazendo festivais porque não existe mais verba para isso. As verbas estão todas bloqueadas", denuncia.

Kátia Adler, que teve um avô pesquisador exilado na ditadura, diz que não esperava reviver "esse medo, esse menosprezo pela ciência, pela educação, pela cultura", mas termina a entrevista com uma nota positiva.

"Esses grupos que estão se formando como o 'Basta', 'Estamos juntos', isso me dá um pouquinho de esperança", conclui.

Kátia Adler precisa da participação do público para financiar o evento. Ela não tem a menor ideia de quantas pessoas irão aderir a esta edição digital, mas pelos seus cálculos, se metade dos nove mil seguidores da Jangada no Facebook pagasse 3 euros (por volta de R$ 17) para assistir a um único filme, o financiamento estaria garantido.