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Cinco anos após Charlie Hebdo, Laerte fala da censura ao humor e do Porta dos Fundos

A cartunista Laerte - Rafael Roncato/UOL
A cartunista Laerte Imagem: Rafael Roncato/UOL

Caroline Amaral Coutinho

Especial para a RFI

07/01/2020 17h19

Em 2015, os irmãos Kouachi invadiram e mataram cinco cartunistas, um economista, uma psicanalista e uma cronista no jornal satírico Charlie Hebdo em nome de sua religião. O massacre marcou, assim, uma onda de debates sobre censura, blasfêmia e liberdade de expressão que chegou até o Brasil. Cinco anos depois, o que mudou na relação entre humor e público no país?

Para a cartunista Laerte Coutinho, um dos maiores nomes do cartum no Brasil, não muito e quase tudo.

"A situação de eleger Bolsonaro uns poucos anos antes das eleições era, para mim, uma hipótese humorística. E estamos em um país onde isso aconteceu. Isso nos deixa numa situação humorística ou trágica?", ela questiona.

Para a cartunista, o humor de alguns comediantes, como o Porta dos Fundos, está inserido neste contexto tragicômico. No dia 24 de dezembro, a sede do grupo humorístico, no Rio de Janeiro, foi atacada com coquetéis molotov, sem deixar feridos. O atentado se passou após críticas ao especial de Natal do Porta dos Fundos, na Netflix, que sugeria que Jesus era homossexual.

"O que o Porta dos Fundos praticou em forma de discurso humorístico não é uma ofensa à religião, é uma ofensa aos homofóbicos", afirma a cartunista.

"Humor não é neutro"

Segundo Laerte, os ataques ao Porta dos Fundo reforçam sua visão de que é impossível limitar o humor sem censurar ideias, já que o humor não pode ser completamente neutro.

"O fato de você estar lidando com uma linguagem que provoca reações como o riso não quer dizer que você esteja num território de neutralidade ideológica. Não tem neutralidade nenhuma, você está sempre trabalhando em um campo ideológico", explica.

Ontem, a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), acompanhada por representantes das Nações Unidas, afirmou que a intolerância religiosa está crescendo globalmente. Segundo Christophe Deloire, secretário geral da RSF, as lições essenciais do atentado ao jornal satírico não foram completamente internalizadas.

"Lembramos aos chefes de Estado e de governo, especialmente àqueles que marcharam pelas ruas de Paris em 11 de janeiro de 2015 contra o terrorismo e pela liberdade de expressão, a importância de proteger jornalistas e cartunistas, é claro, mas também de proteger o direito de criticar sistemas de pensamento", afirma Deloire.

Blasfêmia

Em cinco anos, oito países retiraram a noção de "blasfêmia" de suas jurisdições, enquanto 69 continuam a repreender seus cidadãos por esse conceito. Mauritânia, Brunei, Paquistão, Irã e Afeganistão ainda aplicam a pena de morte para esses casos.

No Brasil, a Constituição em vigor desde de 1988 assegura a liberdade religiosa de seus cidadãos. O artigo 19 proíbe o Estado de expressar preferência religiosa, definindo-se, desta forma, como laico.

Para Laerte, a relação entre humor e religião se expressa de maneira diferente em cada país, porém, a intolerância explicita uma nova responsabilidade para os produtores de conteúdo.

"O episódio com o Porta Dos Fundos também me fez pensar. Com quem estamos lidando quando usamos uma linguagem para conduzir uma piada? Não estamos só buscando produzir risadas, estamos trabalhando com ideias", afirma.

Do outro lado do oceano Atlântico, a mais nova edição do Charlie Hebdo explora um ângulo novo da censura: o poder da internet para formatar o "politicamente correto".

"Ontem, dizíamos merda a Deus, ao Exército, à Igreja, ao Estado. Hoje, temos que aprender a dizer merda às associações tirânicas, minorias egocêntricas, blogueiros e blogueiras que tocam nossos dedos como pequenos professores de escola", escreve Riss, diretor do Charlie Hebdo, no editorial de hoje.