ESTREIA-"O Sol do Meio-Dia" revela amor e amizade na Amazônia
SÃO PAULO (Reuters) - A cineasta paulistana Eliane Caffè é uma especialista em mapear sertões e almas. Sempre em parceria com o dramaturgo Luiz Alberto de Abreu, ela explorou os rincões profundos do Brasil em três filmes até agora, construindo uma obra de identidade sólida, premiada em festivais nacionais e internacionais, como Biarritz (França) e Gava (Espanha).
Neste terceiro longa, "O Sol do Meio-Dia", estreando em São Paulo, a Amazônia profunda é o ambiente em que respiram seus densos personagens: o barqueiro Matuim (Chico Diaz, de "Praça Saens Peña"), seu ajudante e faz-tudo Artur (José Carlos Vasconcelos, de "Mutum") e Ciara (Cláudia Assunção), a mulher que os divide.
Em seu primeiro longa, "Kenoma" (1998), o cenário era o sertão mineiro, onde vivia um homem (José Dumont) obcecado por concretizar o mito do moto-perpétuo. Em "Narradores de Javé" (2003), um remoto povoado baiano lutava para registrar por escrito sua história, no momento em que é ameaçado pelas águas de uma represa.
Embora trate de amizade e amor, os sentimentos vão sendo incorporados pelo personagens de uma maneira tão pouco idealizada, tão fora dos clichês habituais da dramaturgia, que é possível acompanhar os acontecimentos sempre com surpresa, como se a história estivesse acontecendo durante a projeção. Esta naturalidade, de fato, é fruto de muito trabalho, de uma depuração de roteiro que conta com a colaboração decisiva dos atores, suas improvisações e sugestões, ao longo da produção.
Contando com atores tão qualificados quanto Diaz e Vasconcelos - ambos premiados no Festival do Rio de Janeiro 2009 -, a narrativa desta amizade flui como água limpa. O relacionamento entre os dois surgiu do acaso de seu encontro e de duas urgências: a necessidade de Matuim de sumir, por conta da perseguição de alguns homens à procura de uma carga misteriosa, e de Artur, recém-saído da prisão, com uma dor enorme oculta no peito.
Os dois homens se aventuram no curso de um rio, rumo a Belém, compartilhando o extremo contraste da tagarelice de Matuim e do silêncio culpado de Artur. Ao seu redor, desenha-se um modo de vida, uma geografia de vidas instáveis, arrancando sua sobrevivência de expedientes ou contrabando, perambulando por cidades perdidas.
Numa delas, encontram Ciara, a mulher que procura a filha que caiu na prostituição. Como Artur, a mãe se sente culpada, oprimida pela própria inação diante do pai possessivo (Ary Fontoura, "Se Eu Fosse Você 2"). Uma situação que serve sob medida para expor os dilemas da condição feminina nestes lugares. Vinda do teatro e da dança de Minas Gerais, Cláudia é, aliás, uma das grandes forças do filme, com sua beleza calma e energia sempre sintonizada na dos outros dois grandes atores.
Quando Ciara finalmente se arrisca fora da casa paterna, é por uma intuitiva paixão por Artur - a quem deve um ato de bondade. Ela não tem a menor ideia do passado desse homem, que o público, até este momento, também pouco conheceu.
A diretora acerta ao revelar aos poucos as pistas desse grande segredo da alma de Artur - que, afinal, revela-se com uma poesia doída e sincera, que constrói um ponto alto do filme, dispensando o recurso da trilha sonora para forçar emoções. Os únicos sons na tela são os ruídos da floresta, da cidade, dos animais ou das pessoas. Música, só mesmo incidental, numa cena de festa. O que constitui uma das muitas apostas corajosas da diretora, apoiada no trabalho preciso do desenhista de som Beto Ferraz.
Não há grandes acontecimentos nem façanhas nestas vidas. São três personagens comuns e corriqueiros, figuras miúdas, perdedores, muitas vezes, mas dotados de uma capacidade quase infinita de recuperação. Há momentos em que perdem tudo mas isso nunca é o fim. É desta humanidade que o filme se nutre, tornando-se um dos melhores lançados no cinema este ano. Que o público tenha olhar atento para descobri-lo.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
* As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb
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