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Política, (k)pop e cancelamento: o que os fandoms podem nos ensinar

BTS se apresenta pela turnê "Love Yourself: Speak Yourself" no estádio do Allianz Parque, em São Paulo - BigHit Entertainment/Divulgação
BTS se apresenta pela turnê "Love Yourself: Speak Yourself" no estádio do Allianz Parque, em São Paulo Imagem: BigHit Entertainment/Divulgação

Camila Franco Monteiro

Colaboração para o UOL,

30/06/2020 04h00

Nessas últimas semanas o k-pop, tão disseminado mundialmente e igualmente odiado por quem nunca deu uma chance ao gênero nascido na Coreia do Sul, chamou atenção fora da música. Os stans —termo pelos quais são chamados os fãs no Twitter— usaram sua força nas redes sociais para atrapalhar o comício do presidente norte-americano Donald Trump, em Tulsa, se inscrevendo "de mentirinha" para o evento, deixando o estádio praticamente vazio.

Dias antes, já haviam aderido ao movimento Black Lives Matter, e à série de protestos no mundo todo iniciados pelo assassinato de George Floyd pela polícia: encheram a polícia de Dallas de fancams —vídeos curtos dos idols, como são chamados os artistas de k-pop— para tirar o foco dos protestos e "trollaram" a hashtag #WhiteLivesMatter de vídeos com performances e MVs (sim, videoclipes no kpop se chamam mvs).

As fancams, que muitas vezes são vilãs e criticadas por serem uma forma de spam, viraram protagonistas no ciberativismo desses fãs, que pode parecer novo para o grande público, mas existe desde sempre nas comunidades de pop coreano.


Fandom e ativismo

Há quem diga que ser fã de k-pop é ser ativista: quem gosta de pop coreano precisa ultrapassar preconceitos para adentrar em uma nova cultura desconhecida, multifacetada e milenar. Ao entrar em um show de BTS, por exemplo, você vê pessoas de todas as nacionalidades, idades, cores, tamanhos: é impossível definir um público específico, o maior nome do k-pop atrai multidões. Nas letras, músicas e projetos do grupo, os fãs encontraram mais razões para militar.

As Armys, como é chamado o fandom (ou seja, o conjunto de "stans") do BTS, arrecadaram US$ 1 milhão para o Black Lives Matter em apenas um dia, isso depois de o próprio grupo ter doado o mesmo valor um dia antes. E isso é só mais um dia na vida desses "exércitos", que participam com frequência das campanhas do grupo e vão além, arrecadando dinheiro para instituições que tenham conexão com a mensagem que eles passam.

A pluralidade e transculturalidade dos fandoms de k-pop chamam atenção, pois não se encaixam nos padrões ocidentalizados que conhecemos. E por que existe tanto preconceito em relação a isso? Uma das respostas é por ser um movimento amplamente feminino. O mesmo não acontece com fãs de esporte e torcedores de times de futebol. Ou seja, significa.

E o que política e fandom têm a ver?

Uma das principais características que conecta o comportamento dos fãs de música pop em geral e a política atual é a mitificação. Nas palavras de Thiago Soares, pesquisador da UFPE em música e comunicação, vivemos em um momento onde ídolos e políticos viram mitos:]

Existe uma transformação de afetos de fãs, o afeto pela marca, você milita e atua naquilo. Jenkins (Henry Jenkins, pesquisador seminal na área de cultura de fãs) fala sobre isso através das chamadas 'lovemarks', as marcas que o público ama

Essa militância é intensificada pelas dinâmicas de rede, zonas de contato entre grupos sociais e afeto dos fãs. A cultura dos fãs redefine as relações sociais e políticas nos dias de hoje. O fã sempre teve capacidade e articulação e um grande letramento midiático. E essa relação de fãs e política cresceu muito com a campanha de Barack Obama e se fortaleceu com Trump e Jair Bolsonaro.


Cancelamento da semana

Eliminar, terminar, abortar, anular, cassar, derrogar, invalidar, revogar.

Esses são alguns dos termos que aparecem ao falarmos do tal "cancelamento", em alta nas redes sociais. Para muitos, a cultura do cancelamento é uma grande bobagem e define uma geração "mimimi"; para outros é a realidade cotidiana dentro de muitos grupos políticos e fandoms de artistas pop.

O cancelamento tem como característica principal ser um ato violento; ele expõe, persegue e esculacha a pessoa que está sendo cancelada, independentemente do motivo. É comum no Twitter vermos a hashtag #fulanoisover, que as vezes é utilizada para cancelar de fato alguma pessoa famosa, ou um meme para chamar atenção pois gera curiosidade; todo mundo quer saber quem é o cancelado da semana. E esse comportamento de cancelamento e exposição é uma das principais armas de fandoms e militantes de direita, os bolsonaristas e trumpistas.


Amor, ódio & bots

Taiane Volcan, doutora em letras pela Universidade Federal de Pelotas, trabalha no grupo de pesquisa MIDIARS, analisando grupos de WhatsApp a favor do presidente Jair Bolsonaro. A pesquisadora comenta que todas as movimentações dentro desses grupos são feitas por uma organização estrutural de comportamento baseada em amor e ódio, além da ação coordenada de robôs. Os fandoms têm essa mesma característica, de repetição de informação, não à toa muitas vezes são chamados de bots.

A cultura bolsonarista é muito baseada nisso; espalhar mensagens usando robôs de madrugada, para quando os fãs e apoiadores do presidente acordarem, o assunto ser finalmente disseminado. Esse mesmo comportamento ocorreu com os kpopers, inundando as páginas de trump com fancams de seus idols preferidos.

Fases do cancelamento: da fama ao esculacho

A pesquisadora explica que todo mundo é enaltecido até sair da bolha; vamos do cancelamento ao esculacho rapidamente. O mesmo comportamento pode ser visto nos fandoms de k-pop, seja com jornalistas da área, contas mais populares ou até mesmo fãs que emitiram opiniões "polêmicas".

Na política, Sérgio Moro é um bom exemplo, pois era amado e idolatrado pela maioria dos eleitores de Bolsonaro, e depois que saiu do Ministério da Justiça, se tornou inimigo —mais uma vez voltamos a mitificação dos personagens— e virou alvo. Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, idem.

Para Taiane, isso reflete o medo de disputa e ocupação de espaço virtual, no momento em que essas figuras crescem aos olhos do público, existe uma ameaça ao status quo, ao governo atual. O processo de cancelamento tem fases: ele começa com a fama, seja de um político, de um ídolo ou de uma conta popular no Twitter. Daí as divergências começam, seja por opiniões que destoam da maioria ou por serem realmente problemáticas.

Em seguida, vem a fase das críticas constantes e da total destruição do discurso; você está errado e é descartado. Quem decide? Os juízes do Twitter. Porém, ser descartado não é suficiente, é preciso esculachar, humilhar, buscar informações pessoais, tuítes antigos fora de contexto, tudo isso para acabar com a imagem da pessoa em questão.

Como esses comportamentos influenciam na nossa vida cotidiana?

Os fãs —divididos muitas vezes em subgrupos chamados squads— de kpop, assim como grupos políticos, possuem uma força online gigantesca, seja para o bem como vimos nas campanhas de BTS e ajudando o movimento Black Lives Matter, quanto para o mal, arruinando a saúde mental de muitas pessoas que foram canceladas de forma violenta por pensarem diferente.

Assim como os influencers são figuras-chave na disseminação da campanha de políticos, o mesmo ocorre com contas famosas de fãs nos grupos de k-pop. O Twitter é praticamente um parque de diversões para o kpop: várias hashtags de grupos e idols costumam figurar nos Trending Topics.

Esse cancelamentos que afetam idols e fãs, expondo dados pessoais, fotos e opiniões, faz com que as pessoas comecem a usar as redes de forma distinta, trocando mensagens apenas no privado —as chamadas DMs— motivadoas pelo medo.

Lúcio Souza, jornalista e mestrando em Estética e Culturas da Imagem e Som na UFPE, comenta que quando todo mundo é cancelado todos os dias, os cancelamentos que realmente deveriam acontecer, aqueles que envolvem assuntos graves, acabam se perdendo.

No fundo, acho que o cancelamento não leva a nada dentro de um sistema capitalista, me parece muito contraproducente, é um gasto de energia enorme que não leva a nada, só cria uma sensação geral de mal-estar momentâneo, uma culpa por consumir determinada coisa que logo passa, e as pessoas voltam a consumir normalmente

O jornalista completa:

De uns tempos pra cá (2013 sendo um grande divisor de águas), a gente espera que nós, minorias, sejamos mais conscientes das problemáticas sociais, e talvez a gente tenha criado essa ideia de que toda comunidade, todo mundo na internet, tem entendimento das causas. Mas é a coisa mais fácil do mundo cometer um deslize, ainda mais na cultura pop

O pop é uma disputa de afetos e muitas vezes não queremos reconhecer quando alguém que gostamos comete um erro; é muito mais fácil apedrejar o ídolo/político alheio.

O importante ao pensarmos política e cultura pop é entender que nada é 8 ou 80, preto ou branco, e existem muitas nuances que são importantes em tempos de muitas certezas e poucos fatos expostos.