Em tempos sombrios, Gabriel o Pensador mira em rimas mais pesadas: "Desabafos meus"
Intolerância, falta de empatia, violência, depressão, redes sociais. Sobrevivente, nova música de Gabriel o Pensador, aborda inúmeros temas pesados, ou como próprio rapper diz ao UOL: "Desabafos".
Tempos sombrios, peitos vazios, você foi estrangulado quando o ar ficou pesado dentro do pulmão
O assunto mais denso também fez o rapper embarcar em flows agressivos, rimas mais rápidas e um tom mais introspectivo.
UOL - Sobrevivente é uma música mais pesada.
Gabriel o Pensador - Essa música veio do fundo da alma. Um desabafo de temas que mexeram muito comigo desde Brumadinho. Tudo isso veio remexer as questões lá de trás. Esse descaso com a vida de uma forma geral e a insensibilidade das pessoas. Tem muitos detalhes que as pessoas ouvem, mas nem sabem que são desabafos meus. Por exemplo, quando eu falo que "você foi estrangulado, quando o ar ficou pesado". Essa é uma referência ao jovem que foi estrangulado pelo segurança no Rio. As pessoas falaram para ele soltar o menino, a mãe falando pra ele aliviar a gravata. E o garoto morreu. Os comentários das pessoas depois vêm com uma frieza. "Ah, mas tava drogado". São coisas que mexeram comigo e eu juntei em uma música só.
E o clipe?
Rafael Almeida e Cristiano Garcia dirigiram. As cenas de Brumadinho são do João Paulo Krajewisky. Ele é um cara que foi lá como um guerreiro pra documentar e estava revoltado com essa tragédia. Ele mesmo está na Amazônia agora. São pessoas que fizeram aquilo de coração. São imagens que vêm carregadas com muito sentimento.
O Brasil tem memória curta e as pessoas ficam sendo cozinhadas. As mães lamentam esperando justiça divina porque justiça não veio mesmo.
Esse é um momento em que o rap tem muita pauta para trabalhar?
Não é só um momento. Historicamente temos um país muito problemático. Se as pessoas começarem a ficar ainda mais insensíveis, egoístas e cheias de ódio, os problemas só vão aumentar. A gente já vem de uma história difícil e só o caminho de colaboração e respeito pode aumentar nossa esperança. O clipe também fala da luz no fim da escuridão. A gente tem que acreditar. No clipe, o inseto é a esperança. Ele apareceu ali, pousou na mão, ficou no peito. Literalmente esperança no peito. Durante um tempão eu levei ele comigo. Estamos fazendo esse esforço pra esperança não desaparecer.
Sobrevivente tem rimas mais rápidas, um beat mais pesado...
Nessa música eu aproveitei pra curtir isso mesmo. Fiz flows diferentes, vozes que mudaram ali durante a música. Na minha carreira sempre gostei de experimentar coisas novas. Essa música trouxe essas ideias. A batida mais moderna também me influenciou na hora de fazer a letra.
Você tem passado bastante tempo fora do país?
Esse ano viajei bastante para fazer shows e algumas viagens pra surfar. Fiz oito shows em Portugal e volto agora para fazer o nono. Fui para Angola também para fazer vídeos ligados ao surfe, mas volto em outubro para fazer show por lá. Esse ano particularmente parei pouco no Rio porque fiz muitos shows em turnê constante pelo Brasil. Não parei mais. Dei uma embalada grande. Parei pouco em casa.
Estar fora do Brasil te ajuda a ter uma percepção diferente dos assuntos? Aqui ficamos imersos e acabamos tratando alguns temas com naturalidade.
Exatamente isso. Tantas notícias absurdas diariamente que a gente fica meio anestesiado. Quando você está fora, um motorista de táxi ou alguém curioso pergunta sobre o Brasil, a Amazônia. Você vê a gravidade pelos olhos do outro. Lembro uma vez que estava gravando um disco em Nova York [O Cavaleiro Andante] e aí aconteceu uma chacina no Rio. Pela minha distância a gente via o quanto aquilo era absurdo. Era uma coisa tão fora da realidade. Ao mesmo tempo estava com saudade do Rio e com vergonha dessa notícia. Aí fiz a música chamada Bossa Nove. Ela fala do Rio, um lamento que também fala das coisas boas. Eu conversando com Tom Jobim e Vinicius de Moraes. A distância faz o olhar ficar diferente.
Sobrevivente fala de redes sociais, intolerância, falta de empatia, violência. Desse universo de assuntos que você trata, o que mais te incomoda?
Não dá pra dizer qual é que mais me incomoda, mas eu fiquei feliz de tocar em assuntos que não são fáceis, como depressão e suicídio. Essa música tem um trecho importante que fala sobre as pessoas e que essa dor não é só delas. É um assunto para as pessoas se lembrarem. Por coincidência a música saiu no [mês do] Setembro Amarelo. Eu sempre conto de uma garota que me mandou uma mensagem por causa da música Fé na Luta. Ela tinha depressão desde os 13 anos e aquela música tinha salvado a vida dela quando, aos 21, ela tinha decidido acabar com tudo. No mesmo dia ela viu a música sendo lançada e como a letra falava sobre como o sim era mais forte que não, bem mais forte que o mal. Ela mudou de ideia e queria que eu soubesse. Respondi, entrei em contato, mas acabei me esquecendo. Só lembrava que ela era de Palmas, no Tocantins.
E depois disso?
Aí oito meses depois fui fazer um show lá e não pude convidá-la porque não lembrava o nome, mas lembrei da história. Aí eu ia fazer um vídeo no palco dedicando a música pra ela: "Essa é pra aquela garota que desistiu de tirar a vida por causa do nosso som". Quando eu falei isso, já começando a música, ela já estava na lateral do palco. Foi uma surpresa pra mim. Abracei ela e puxei pro meio do palco. Conversei com ela, perguntei pra ela se a vida valia a pena e ela disse: "Agora vale". Foi arrepiante. Uma celebração da vida. Essa história está sempre comigo. Às vezes, um gesto ou uma música pode mudar uma vida.
Veja a letra de Sobrevivente:
Sangue pra sua sede, ódio na sua rede, seus ouvidos têm paredes e as mentiras travam a sua visão
Tempos sombrios, peitos vazios, você foi estrangulado quando o ar ficou pesado dentro do pulmão
Sopro de vida mal agradecida do parto à partida nossa presença aqui devia ser uma missão
Se a vida é um sopro eu abro as janelas
Se o mar é de lama eu iço as minhas velas
E busco a luz no fim da escuridão
Me libertar da escravidão da mente
Exalar o que é impuro do meu coração
Mas não quero a liberdade isoladamente
Liberdade vigiada é ilusão
A calamidade é banalidade
A dignidade já ficou no chão
Chove impunidade quando a lama invade
Morre uma cidade morre uma nação
Anestesiados pelas novidades
Vistas pelo insta ou na televisão
Nós compartilhamos nossa insensibilidade quando a atrocidade vira diversão
O suicida estava prestes a pular
As pessoas se apressaram pra pegar o celular
As memórias tavam cheias e pediram pra esperar
Por favor não pule ainda nós queremos te filmar
E ele ouvindo lá de cima não entendia bem e não reconheceu ninguém na rua
Mas achou que aquela gente lhe queria bem
E que aquela dor não era mais só sua
Desistiu de desistir e retomou a calma
E todos foram embora quando ele desceu
O silêncio aliviou a sua alma
E o milagre foi que nada aconteceu
Deus tava vendo um jogo lá no céu
Um anjo deu caneta e um outro deu chapéu
Não sei se era um menino do Flamengo ou qualquer outro adolescente da Rocinha, da Mangueira ou do Borel
Quantas mães em desespero
Choram nos seus travesseiros?
Toda noite um pesadelo
Quantas mais farão apelos
Pela justiça divina
Já que a justiça não veio?
Pânico, assalto, chacina
Estupro, arrastão, tiroteio!
Pra eles não importa, gente viva ou gente morta
É tudo a mesma merda
Os velhos nas portas dos hospitais, as crianças mendigando nos sinais
Pra eles nós somos todos iguais
Operários, empresários e presidiários e policiais
Nós somos os otários ideais
A paz é contra a lei e a lei é contra paz
Essa tribo é atrasada demais
A morte é banal
Nos filmes, nos games, na vida real
Matar é normal
Na sala de aula em Suzano
E na verba roubada por baixo dos panos
Preconceito racial, social
Intolerância religiosa, sexual
E os poderosos alimentam a ignorância que sustenta a sua ganância e tudo fica sempre igual
Sangue pra sua sede, ódio na sua rede, seus ouvidos têm paredes e as mentiras travam a sua visão
Tempos sombrios, peitos vazios, você foi estrangulado quando o ar ficou pesado dentro do pulmão
Sopro de vida mal agradecida do parto à partida nossa presença aqui devia ser uma missão
Se a vida é um sopro eu abro as janelas
Se o mar é de lama eu iço as minhas velas
E busco a luz no fim da escuridão
Me libertei da escravidão da mente
Derrubei o muro que separa a gente
Professores são heróis diariamente
Obrigado por plantarem essa semente
Na mudança do presente eu moldo o futuro
Essa lama não vai ser maior que a gente
Vou em frente porque o meu amor é puro
É o abraço do bombeiro com o sobrevivente.
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