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Após renúncia de Fabiana Cozza, espetáculo estreia em SP com três Ivone Lara

Di Ribeiro, Fernanda Jacob e Heloisa Jorge interpretam Dona Ivone Lara em três fases da vida no espetáculo que chega a SP - Divulgação
Di Ribeiro, Fernanda Jacob e Heloisa Jorge interpretam Dona Ivone Lara em três fases da vida no espetáculo que chega a SP Imagem: Divulgação

Renata Nogueira

Do UOL, em São Paulo

29/08/2019 04h00

Dona Ivone Lara - Um Sorriso Negro estreia hoje em São Paulo no teatro Sérgio Cardoso. O espetáculo chega à capital paulista após temporada no Rio e traz Heloisa Jorge, Fernanda Jacob e Di Ribeiro no papel da protagonista. Cada atriz vive uma fase diferente da artista no musical, que ficou marcado pela renúncia de Fabiana Cozza ao papel antes da estreia, no ano passado.

Fabiana Cozza foi escalada a pedido da família da sambista, que havia aprovado o nome da cantora ainda em vida junto à produção do espetáculo. Parte do movimento negro, porém, viu a escalação de Cozza - filha de mãe branca e pai negro - como uma tentativa de embranquecer a protagonista. Abriu-se assim uma discussão sobre colorismo e Fabiana preferiu renunciar.

O UOL acompanhou o ensaio geral para a estreia em solo paulistano e conversou com o elenco do musical e com Jô Santana, idealizador e diretor geral de Dona Ivone Lara - Um Sorriso Negro. Eles falaram não só sobre a questão do colorismo, como também sobre a rica trajetória profissional e pessoal de Ivone Lara, que morreu em abril do ano passado aos 97 anos.

Referência feminina

"É importante contar a história dela que talvez não tenha sido tão contada assim. Dela menina, ela já mais madura, ela enfermeira, e não só a história da sambista", destaca Di Ribeiro, que faz sua estreia em musicais interpretando a primeira fase de Dona Ivone Lara, aos 12 anos, quando ela criou seu primeiro samba de partido-alto: Tiê, Tiê.

Heloisa Jorge, intérprete de Dona Ivone Lara aos 26 anos, quando começou a ganhar destaque no mundo do samba e abrir espaço para outras mulheres, destaca a universalidade da história da sambista.

"A gente tem uma responsabilidade muito grande nas mãos, não só por estar fazendo a Dona Ivone, mas porque ela representa mulheres da nossa família. Nossas avós, tias, primas. Tem coisas que a Dona Ivone fala que eu ouvia na minha casa e olha que eu nem sou brasileira, sou angolana", destaca a atriz, que está no ar na novela A Dona do Pedaço e dividirá o papel com a atriz Belize Pombal.

"As voltas que essa mulher deu para conquistar o que conquistou ainda faz sentido até hoje. É grande a responsabilidade de trazer uma história muito potente à tona e compartilhar discursos e ações que também são pertinentes à sociedade de hoje", completa Belize.

"Ela chegou metendo o pé na porta. Para mim é muito importante como atriz estar aqui hoje vestindo essa roupa e fazendo a Dona Ivone", finaliza a atriz e cantora Fernanda Jacob, intérprete da fase mais madura da sambista, aos 80 anos.

Mulher à frente do tempo

Heloisa Jorge e Pedro Caetano - Divulgação - Divulgação
Heloisa Jorge e Pedro Caetano em cena do musical
Imagem: Divulgação

Dona Ivone Lara enfrentou resistência dentro da própria casa quando, de compositora a intérprete, passou a se dedicar cada vez mais ao que amava: o samba. Uma parte importante desse momento foi seu casamento com Oscar Costa, filho de Alfredo Costa, presidente da escola Prazer da Serrinha.

"A história dela e do Oscar mostra pra gente uma coisa muito importante, que é inclusive o que a gente mais precisa nos dias de hoje. A história dos dois mostra que com amor muita coisa é possível. Ele sustentou uma posição que naquela época não era tão comum, que era o de homem ficar em casa e cuidar dos filhos para que a mulher pudesse trabalhar e estudar, apesar de ele viver em uma época em que isso não acontecia", conta o ator Pedro Caetano, que interpreta Oscar.

"Ele enfrentou a pressão familiar também, porque o pai dele queria que ele fosse esse cara autoritário, que botava a mulher na rédea. E por ele ser tão apaixonado pela Ivone, ele topou esse lugar. Tem um conflito no início, ele sentiu esse incômodo, mas depois ele apoiou bastante a Dona Ivone na caminhada dela. Então essa também é uma demonstração que a gente deixa para o público nos dias de hoje de como a gente precisa de amor, olhar o próximo, amar o outro, entender o outro lado."

O espetáculo escolhe

Profunda conhecedora da obra de Dona Ivone Lara e uma das grandes vozes femininas do samba da nova geração, era natural a escolha de Fabiana Cozza para o papel principal. Os organizadores, no entanto, contornaram a situação de forma a manter o espetáculo e sua essência, de exaltar a história da sambista.

"Toda reivindicação é pertinente. Só não concordo com a violência. Mas [após a renúncia de Cozza] o Elísio [Lopes Jr, dramaturgo e diretor artístico] veio com a ideia de buscar a Fernanda Jacob que é do movimento negro e seguimos ensaiando", relembra Jô Santana, idealizador do musical, que pediu permissão à própria Dona Ivone para contar a história dela. A ideia surgiu depois do sucesso de outro musical dele, em homenagem à Cartola, que levou mais de 100 mil pessoas ao teatro.

"Fizemos a nossa estreia [no Rio] e estamos aqui. Eu acho que o espetáculo escolhe. Não era aquele momento para a Fabiana. Mas ainda vamos trabalhar juntos, pois ela é uma grande artista, um grande ser humano", continua Jô, que atendeu outro pedido pessoal de Ivone Lara, que queria que a estreia do musical acontecesse em sua terra natal, o Rio de Janeiro.

"Hoje com essa coisa de Facebook todo mundo se acha no direito de falar o que quiser sem pesquisar a história da pessoa. Um coletivo negro boicotar o próprio artista negro? Mas as pessoas têm o direito de reivindicar. Estamos aqui com o espetáculo e essas pessoas que criticaram, por favor, venham assistir."

Racismo

intérpretes de Dona Ivone Lara - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Fernanda Jacob, Belize Pombal, Heloísa Jorge e Di Ribeiro, intérpretes de Dona Ivone Lara
Imagem: Reprodução/Instagram

Para o elenco principal, a discussão em torno da renúncia de Fabiana Cozza não é um tabu. "A gente teve a felicidade de protagonizar essa história, que é uma discussão sobre colorismo no país. A gente não fala sobre isso. Eu e o Pedro, por exemplo, que temos a tez clara temos mais privilégios. Para fazer televisão você enxerga um padrão de negro, que é o padrão mais bem aceito na nossa sociedade. O que aconteceu com a história da Fabiana Cozza foi super pertinente para a gente começar a falar sobre isso", acredita Heloisa Jorge, a Dona Ivone de 26 anos.

"A gente fica o tempo inteiro falando que aqui no Brasil o racismo é velado, que a gente vive numa democracia racial, o que é uma balela. Os números estão aí, as estatísticas mostram que a gente continua sendo a parcela da população que mais morre, que é preterida, então que bom que esse espetáculo também suscitou essa discussão. Acho que a gente tem que começar a falar sobre esse assunto com mais naturalidade", diz a atriz.

Pedro Caetano concorda. "Situações como essa servem para a gente debater, e não fugir. Parece que muita achou que estava tendo uma fuga da questão, que a gente não queria falar sobre, mas a gente coloca na roda. Vamos debater. Vamos fazer rodas de debate para que a gente aprenda com tudo isso."

Sonho Meu

Outra função do musical é tornar ainda mais conhecida a obra da sambista que viveu 97 anos. "Eu só entendi a dimensão da importância que essa mulher tem para a história não só da música popular brasileira, mas principalmente para as mulheres negras, fazendo a Dona Ivone. Tem muitas composições que estão aí na boca de grandes artistas, interpretadas por grandes nomes que eu não sabia que era de composição da Dona Ivone. Eu achava que Sonho Meu, por exemplo, era da Gal e da Bethânia", admite a protagonista Heloisa Jorge.

O musical fica em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso até 20 de outubro, com sessões de quinta-feira a sábado às 20 e aos domingos às 17h. Os ingressos custam entre R$ 20 e R$ 75 e estão à venda na bilheteria do teatro e online no site da Sympla.

Serviço

Musical Dona Ivone Lara - Um Sorriso Negro

Estreia: 29 de agosto

Temporada: Quinta a domingo até 20 de outubro

Quinta, sexta e sábado: 20 horas

Domingo: 17 horas

Onde: Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, São Paulo)

Ingressos: De R$ 20 a R$ 75 no site da Sympla

Duração: 135 minutos

Classificação indicativa: 12 anos