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Focado na ditadura, documentário "Tá Rindo de Quê?" debate humor no Brasil

Charge reproduzida no documentário "Tá Rindo de Quê?" - Reprodução
Charge reproduzida no documentário "Tá Rindo de Quê?" Imagem: Reprodução

Carlos Helí de Almeida

Colaboração para o UOL, no Rio

09/11/2018 17h47

"Não se pode enganar o povo o tempo todo; mas 93% do povo em 87% do tempo, dá pé", diz uma das frases que se sobrepõem às imagens de época da abertura do documentário "Tá Rindo de Quê? - Humor e Ditadura". O texto satírico, atribuído a Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do jornalista cronista Sérgio Porto (1923-1968), prepara o espírito do espectador para um divertido e revelador resgate da produção humorística brasileira durante a ditadura militar (1964-1985), um dos períodos mais sombrios da história recente do país.

Dirigido a seis mãos por Cláudio Manoel, Álvaro Campos, e Alê Braga, o filme, uma das atrações da Mostra Première Retratos, do Festival do Rio, investiga como era fazer humor durante o regime dos generais, marcado por repressão, censura e ameaça de prisão. Relembra a criação da precursora revista "Pif-Paf" e, posteriormente, o jornal alternativo "Pasquim", a importância do grupo teatral "Asdrúbal Trouxe o Trombone" e de programas humorísticos televisivos de sucesso, como "Faça Humor, Não Faça a Guerra", "Família Trapo" e "Satirycon".

O papel do "Pasquim" naquele cenário é ressaltado. "O próprio Chico Caruso, cartunista da publicação, faz uma comparação interessante no filme", conta Braga. "Ele diz que quando um ambiente está todo fechado e abre uma frestinha, o vento passa mais forte e rápido por ali. O "Pasquim" fez isso. Era um jornal que não tinha uma audiência como um "Jornal Nacional" ou um humorístico como "Família Trapo", entre outros fenômenos televisivos, ele só que chegou com uma velocidade tremenda, e mostrando caminhos a serem seguidos".

O fato material de arquivo é ilustrado por testemunhos preciosos de criadores, que aprenderam a driblar as imposições do governo, como os jornalistas Jaguar e Millôr Fernandes, os humoristas Jô Soares, Carlos Alberto de Nóbrega e executivos de TV, como José Bonifácio de Oliveira, o Boni. "O filme pretende homenagear quem fez graça em tempos que não tinha graça nenhuma", explica Cláudio Manoel, que integrou a equipe do "Pasquim", no final dos anos 1970, antes de fundar, com Bussunda, Hubert e Claudio Paiva, o cáustico "O Planeta Diário", no início dos anos 1980.

"Fala-se e estuda-se muito a ditadura militar, mas há pouca referência ao humor feito a época, embora existisse, como sabemos, uma produção imensa do gênero naquele período", elabora Manoel. "Havia o humor de combate, de resistência, que era marcante nas edições do Pasquim, mas que também contaminou a produção teatral e, na medida do possível, a televisiva. Apesar das limitações claras, havia uma geração excepcional de humoristas atuando e produzindo, muitos na ponta dos cascos, como o Anysio, o Ronald e Golias, o Costinha, o Juca Chaves".

O filme oferece diferentes interpretações sobre o período. Carlos Alberto Nóbrega, que durante décadas esteve à frente do humorístico "A Praça é Nossa", confessa que "a ditadura é uma coisa horrível, ela fica para sempre. Você é dominando por uma força, por uma falsa moral, pelo medo. O medo que você tem do bandido, a gente tinha de policial". Já o ator Roberto Guilherme, imortalizado como o Sargento Pincel, um dos personagens do programa "Os Trapalhões", diz que "na ditadura havia respeito, porque você saía na rua e não era assaltado".

Alê Braga reforça que em nenhum momento o documentário tem a intenção de julgar seus personagens, ou suas atitudes na época. "Aos olhos de hoje, se tirarmos do contexto, dá tudo errado", avisa o diretor, que colheu diferentes casos de cerceamento. "Há desde o caso mais simples, como a do censor federal que trabalha na mesa, ao lado do redator, como no caso do "Pasquim", como os mais complexos, envolvendo aprovação de conteúdo televisivo. As emissoras esperavam a aprovação de Brasília de programas já gravados".

A relação entre censores e censurados nem sempre tinha final infeliz, como a que resultou na prisão da equipe do "Pasquim", no final dos anos 1960, ou a proibição da novela "Roque Santeiro", da Globo, já com dezenas de capítulos gravados, nos anos 1970. "Há histórias ótimas, como a da censora que trabalhava ao lado do Jaguar, na redação do Pasquim, que dava uísque para ela e acaba conseguindo liberar coisas que ele queria. Tem o caso do pai da Helô Pinheiro, militar que adorava conversar com o Jaguar, que acabava negociando com ele: "Tira isso aqui, para não pegarem no meu pé depois"", recorda Braga.

"Tá Rindo de Quê?" é o primeiro capítulo de uma trilogia sobre o humor no Brasil. "Rindo à Toa - Humor Sem Limites", o segundo documentário da série, também em cartaz no Festival do Rio, cobre o período imediato à reabertura política, em 1985, com a explosão do humor sem freios, alimentado pela euforia com o fim da censura, e vai até o início dos anos 2000. Um terceiro, que avança até os dias de hoje, ainda está em fase de pré-produção.  É neste segundo momento que ganham popularidade publicações como "O Planeta Diário" e "Casseta & Planeta", antes relegadas ao underground.

"É quando acontece o estouro da boiada, tem-se a impressão de que possível fazer piada de tudo e de todos", lembra Claudio Manoel. Até a onda do politicamente correto, que começou a ganhar corpo naquela década, perdeu força em cenário de descompressão de liberdades. "Se alguém reclamasse de uma piada, poderia ser taxado de careta, de censor, repressor. O Cláudio Paiva fala disso no filme, que teve um momento em que era difícil saber o limite. Durante as pesquisas para o documentário, a gente chorava de rir com algumas piadas. E eu perguntava ao Cláudio: "Como vocês conseguiam falar disso dessa maneira"", recorda Braga.

O terceiro título da série discorrerá sobre o humor brasileiro do século XXI, à luz das novas plataformas de difusão e do recrudescimento do politicamente correto. "É quando constatamos que o humorista não precisa de um canal para ter uma audiência de massa. Apareceram alternativas de mostrar seu trabalho, sem precisar de uma grande editora, de um grande jornal, uma emissora de TV. Temos a volta do stand-up, das redes sociais. Um cara do interior do Piauí com um iPhone pode ter 40 mil seguidores. Hoje, você mesmo é o seu broadcaster", explica Manoel.