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Documentário sobre Pepe Mujica resgata legado político e ideológico do uruguaio

Emir Kusturica e Pepe Mujica no Festival de Veneza - Antony Jones/Getty Images
Emir Kusturica e Pepe Mujica no Festival de Veneza Imagem: Antony Jones/Getty Images

Carlos Helí de Almeida

Colaboração para o UOL, no Rio

04/11/2018 16h12

Anos atrás, o diretor sérvio Emir Kusturica ouviu falar da existência de um presidente de um país sul-americano que dirigia tratores. "Alguém me mostrou uma foto do Mujica conduzindo um desses pequenos veículos agrícolas, usando em lavouras. Eu disse para mim mesmo: 'Isso vai ser o meu próximo filme', lembra o premiado autor de filmes como "Underground – Mentiras de Guerra" (1995), vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes.

Tinha início a longa jornada que resultou em "El  Pepe – Uma Vida Suprema”, documentário que examina o legado de vida do ex-guerrilheiro e carismático líder político Jose Pepe Mujica, que presidiu o Uruguai entre 2010 e 2015. O filme, uma das atrações do Festival do Rio, parte do registro do último dia na presidência para revelar o pensamento do estadista que ganhou reputação como líder popular, que abdicou de parte de seu salário e dos luxos de seu posto no governo.

"Quando vi aquela multidão de gente chorando à frente do palácio presidencial, no dia em que ele deixou o cargo, fiquei paralisado", disse Kusturica durante o Festival de Veneza, em setembro, onde “El Pepe – Uma Vida Suprema” ganhou première mundial, fora de competição. "Aquela despedida tornou-se uma coisa tão maluca que quase quebrei a perna tentando fazer uma boa tomada. Foi como se os próprios Rolling Stones tivessem chegado a Montevideo".

O projeto tomou quatro anos do cineasta, que visitou várias vezes o Uruguai para pesquisas e colher depoimentos. A extensa troca entre diretor e personagem propiciou um ambiente para uma maior intimidade: no filme, entre uma conversa e outra, Mujica aparece ensinando Kusturica a tomar erva mate, tradicional bebida dos pampas, servida quente. "Não sou um homem de cinema e nem conhecia pessoalmente o Kurustica. Mas, depois de conhecê-lo melhor, tornamo-nos amigos", confessou o ex-presidente, durante sua meteórica passagem pelo festival italiano.

Documentarista e ex-presidente uruguaio tomam mate durante gravação - Reprodução - Reprodução
Documentarista e ex-presidente uruguaio tomam mate durante gravação
Imagem: Reprodução

Em Veneza, onde estreou outro longa-metragem inspirado na trajetória do ex-presidente, o drama "Uma Noite de 12 Anos", de Álvaro Brechner, que recria os anos de Mujica como preso político no Uruguai, nos anos 1970, ele se sentia um peixe fora d'água, cruzando o tapete vermelho usado por inúmeras estrelas de cinema do mundo. "Só estou aqui por causa do Kusturica, que dedicou a vida ao cinema". "Mas isso aqui não é minha vida, sou um cara simples do interior, com algum conhecimento intelectual, não pertenço a esse lugar", afirmou o político de 83 anos que, na juventude, alinhou-se à guerrilha dos Tupamaros e, capturado durante a ditadura militar no país, ficou encarcerado entre 1972 e 1985. "Filmes não têm nada a ver com difusão de ideias políticas. Cinema é uma forma de arte que comunica, mas há coisas específicas que não se transmite por imagens. Porque prefiro a mágica das palavras".

Mujica é considerado um dos estadistas mais progressistas da atualidade, que deu um novo impulso às ideias socialistas. Durante seu período na presidência, ele legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, discriminou o uso da maconha e combateu a pobreza e a indigência. Também dedicou 90% de seu salário a projetos sociais. “Ele é, provavelmente, o único político  não corrupto no mundo. No filme, Mujica diz que quando se é eleito pela maioria, você deve viver como ela, e não como a elite. Ele abraçou tudo o que foi necessário para melhorar a sociedade”, elogiou Kusturica. 

Mesmo nos bastidores da vida pública – Mujica deixou a cadeira que ocupava no senado uruguaio em meados deste ano –, o ex-presidente demonstra preocupação com os rumos de regiões de instabilidade social e política, como a África e América Latina. "No Brasil, por exemplo, há uma forte reação da população contra medidas do governo atual de mexer em direitos trabalhistas criado nos anos 1930 do século passado. Vem daí a popularidade do ex-presidente Lula, que vem da camada trabalhadora".

Segundo Mujica, a Europa carrega uma culpa sobre a atual realidade da África, por causa de seu passado colonialista. Vê como única solução para a região uma espécie de novo plano Marshall para a recuperação do continente africano, caso contrário, "o Mediterrâneo não será suficientemente grande para virar um cemitério".

Emir Kusturica e Pepe Mujica no Festival de Veneza - Antony Jones/Getty Images - Antony Jones/Getty Images
Imagem: Antony Jones/Getty Images

"Graves erros foram cometidos contra a África. Todos nós viemos das tradições africanas, porque eles foram forçados a trabalha a terra em diferentes lugares do planeta. As novas gerações precisam entender isso. Temos uma dívida muito grande com os africanos, particularmente com suas mulheres, que são a maioria da população. Caso nada seja feito, as consequências podem ser imprevisíveis".

Sobre a Venezuela, que atravessa grave crise humanitária e econômica sob o governo de Nicolas Maduro, diz estar confiante de que "o povo venezuelano conseguira reagir, sem ajuda de ninguém": "A obsessão venezuelana pelo petróleo é maléfica, porque leva ao abandono de outras atividades econômicas. Veja o que aconteceu com cidades que dependiam de seus lucros, como o Rio de Janeiro, quando estes foram redistribuídos pela União".

O filme de Kusturica também abre espaço para o estilo de vida simples do ex-presidente, ao lado da mulher Lucia Topolansky, que conheceu ainda na juventude, durante os anos de militância, e a adorada cadela Manuela. "Escolhi a vida que tenho. Não sou pobre, simplesmente tenho poucos compromissos econômicos. A preocupação com o dinheiro leva a vida embora. Devemos nos dedicar mais a afetos. A liberdade está dentro de nossas cabeças", filosofou Mujica.