Muito antes do "Big Brother", experimento isolou desconhecidos em alto mar
Onze homens e mulheres isolados em um pequeno espaço por cerca de três meses. Você acha que já viu essa história antes, mas não é mais uma edição do "Big Brother" ou qualquer outro reality show. Trata-se de uma experiência real conduzida pelo antropólogo hispano-mexicano Santiago Genovés em 1973.
Diferente dos programas que ganharam popularidade na TV brasileira e mundial nas últimas duas décadas, o experimento feito há 45 anos era bem mais arriscado, mas certamente serviu de base para as mentes que viriam a desenvolver os realities.
A ousadia do pesquisador consistiu em construir uma balsa e cruzar o Oceano Atlântico com completos estranhos de diferentes nacionalidades que ele selecionou com anúncios em jornais. Não havia recompensa pela participação, e todos tinham plena consciência de que aquela poderia ser uma missão praticamente suicida, dados os imprevistos em alto mar.
Batizada de Acali, a embarcação sem motor cruzou o oceano entre a Espanha e o México com cinco homens e seis mulheres à bordo, sendo apenas uma das pessoas realmente capacitada para lidar com emergências em alto mar: a capitã sueca María Bjornstam.
O grupo das mulheres contava ainda com duas americanas, Fé Seymour e Mary Gidley; uma francesa, Servane Zanotti; uma argelina, Rachida Lievre; e a médica israelense Edna Reves. Todas elas se reencontraram mais de 40 anos depois em uma réplica da balsa onde contaram suas versões da história no documentário "A Balsa", que está em cartaz na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Dos cinco homens que embarcaram na aventura, apenas um ainda está vivo: o japonês Eisuki Yamaki, que tinha a função de registrar o grupo com fotos e vídeos. Ele também aparece em trechos do documentário do diretor sueco Marcus Lideen, que é conduzido com uma narração de trechos dos registros originais do antropólogo que conduziu o experimento.
Se você pretende assistir ao filme, não prossiga com a leitura. "A Balsa" compete na categoria novos diretores da Mostra de SP e ainda tem sessões nos dias 20 (21h40 - Itaú Frei Caneca 4), 22 (17h50 - Itaú Frei Caneca 5) e 27 de outubro (14h - IMS).
Inversão de valores
Desde o início, o objetivo de Santiago Genovés era causar conflitos e observar o resultado deles. O antropólogo estudava a violência humana e teve a ideia de isolar o grupo em uma balsa depois de passar por uma experiência de um sequestro em um avião que o levava para a Cidade do México. A situação inesperada em um ambiente onde as pessoas não tinham para onde escapar foi o embrião do Acali.
Empenhado nisso, ele fez questão de selecionar pessoas de diferentes locais e religiões. Além dele próprio e do fotógrafo japonês Eisuki Yamaka, no grupo masculino estava um padre angolano, Bernardo Bongo; um cientista social uruguaio que fora aluno dele, José María; e o grego Charles Anthony.
Disposto a causar situações de conflito e ciente do protagonismo que as mulheres começavam a tomar na sociedade, o cientista resolveu colocá-las no comando das principais funções do barco, enquanto os homens fariam as tarefas secundárias, como cozinhar e limpar.
Machismo
Mas, passados mais de 50 dias da experiência, a decisão se voltou contra o próprio cientista, que apesar de atuar como observador do grupo, não tinha como se manter distante do experimento. Foi Santiago que, em um momento de nervoso, decidiu tirar a única capitã do grupo do comando da embarcação. Havia a possibilidade de que eles cruzassem com a temporada de furacões no mar do Caribe e ele se negou a esperar a tormenta passar ancorado em uma ilha. Foi o primeiro grande conflito do grupo, o que fez com que María se isolasse por um período.
A capitã voltou ao comando em uma outra situação de emergência que só ela pode controlar. Um navio enorme cruzou o caminho deles, e Santiago se desesperou. Foi graças à calma de María, que delegou tarefas a cada uma das pessoas do grupo para contornar o imprevisto, que eles escaparam vivos do incidente. A partir daí, ela recuperou o comando da balsa. A capitã já havia enfrentado outra barreira no primeiro dia da missão. Seu namorado era o capitão do barco que levou a balsa até alto mar, já que a embarcação não tinha motor. Na hora de liberar o grupo, ele passou um rádio desesperado à capitã pedindo para que escolhesse entre ele e a balsa. O resto é história.
O machismo do criador da missão também ficou aflorado quando ele tentou fazer um reparo no casco da balsa do qual apenas uma das mulheres estava claramente apta a resolver. Como Santiago não conseguiu fazer o conserto, as mulheres tiveram de acordar algumas horas antes para fixar o barco escondidas. A ação deixou o antropólogo irado, e ele logo passou a ser chamado de ditador por parte do grupo, que chegou a fazer um plano para matá-lo, o que não foi executado.
Racismo
Fé Seymour, única mulher negra do grupo, só contou durante o documentário, gravado 43 anos depois da experiência, que considerava o antropólogo racista. Entre outras atitudes, ela destacou quando Santiago tentou fazer com que ela se envolvesse sexualmente com Bernardo, o padre angolano, único negro entre os homens.
Fé ainda se emocionou ao contar também só agora sobre uma experiência sobrenatural que teve enquanto estava sozinha em uma das vigias noturnas. Ela lembrou que talvez fosse a primeira negra a voltar a cruzar o Atlântico rumo à América, depois dos escravos. Às lágrimas, a americana disse ter ouvido as vozes dos antepassados que ficaram presos para sempre no fundo do mar e das embarcações que os levavam.
Violência
O único episódio de violência explícita que aconteceu durante os 101 dias teve como vítima um tubarão. Na pescaria diária, o grupo capturou o bicho. Enquanto uns defendiam devolvê-lo ao mar, um dos homens pegou o machado e matou o tubarão a golpes, chegando a abrir o animal e mostrar seu coração ainda pulsante para as câmeras. Em seus registros, Santiago confessa que achou prudente esconder o machado após o episódio.
Sexo
Por mais que o condutor do experimento tentasse estimular o sexo entre os participantes (um dos critérios de seleção foi aparência atraente), nenhuma orgia aconteceu dentro do barco, garantem os sobreviventes. Depois de algumas semanas que a balsa havia deixado a Espanha, porém, a mídia passou a especular que o Acali, na verdade, seria uma orgia em alto mar.
As notícias sensacionalistas recebidas por eles via rádio, uma delas ligadas a um estudioso da mesma universidade de Santiago Genovés, deixaram o antropólogo arrasado. Ele ficou doente, deixou de fazer anotações, e praticamente abandonou o experimento.
Episódios de sexo aconteceram dentro da balsa, mas não da forma como foi noticiada pela mídia. A francesa conta que fez sexo com dois companheiros, mas que as relações aconteciam em momentos específicos, quando duas pessoas estavam de vigília, por exemplo. Não havia privacidade na embarcação, já que todos os 11 participantes dormiam lado a lado em um mesmo ambiente e até mesmo o banheiro era aberto e do lado de fora.
A lição final
Quando o grupo desembarcou em Cozumel, no México, no final de 1973, uma breve reunião foi a cerimônia de despedida deles. Santiago fez uma rápida pesquisa e constatou que apenas três pessoas não tinham considerado o experimento como bem-sucedido. Segundo os sobreviventes, a lição que fica é a convivência e a tolerância.
"Eu acho que a experiência foi muito bem-sucedida, porque nós aprendemos a ser tolerantes", admitiu Fé Seymour, mesmo com todas as emoções que enfrentou durante a viagem.
Curiosamente, a maioria das pessoas voltou para suas vidas de antes sem grandes abalos. Parte do grupo, principalmente as mulheres, era casada e tinha filhos. Santiago Genovés morreu em 2013. Ele deixou a experiência registrada em um livro, "Acali: Espelho do Mundo".
O tom final é positivo, já que por mais que o pesquisador tenha se esforçado para criar conflitos, até mesmo jogando uns contra os outros propositalmente em dinâmicas, o que prevaleceu foi a boa convivência.
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