HQ narra os 111 dias de cativeiro de francês sequestrado no Cáucaso
No 66º dia de cativeiro do trabalhador humanitário francês Christophe André como refém de uma milícia na região do Cáucaso, ele foi informado do valor pedido por seus sequestradores aos seus superiores e às autoridades francesas em troca de sua libertação: um milhão de dólares. Na avaliação de André, aquele foi o fundo do poço de seus 111 dias mantido algemado, preso a canos de aquecedores e radiadores e dormindo no chão de casas e apartamentos de vilarejos na Chechênia.
"A minha raiva tornou-se desespero e me senti humilhado", conta o então responsável pelas finanças de um grupo da organização não governamental Médicos Sem Fronteiras instalado em Nazaran, cidade russa localizada no norte do Cáucaso. "Eu quero fugir mais do que nunca, mas não a qualquer preço", pensou na época. O montante do resgate não chegou a ser pago, mas André conseguiu escapar e sobreviveu para contar sua história.
Os quase quatro meses do administrador como vítima de seus sequestradores entre julho e outubro de 1997 e sua inesperada fuga em são o foco das 432 páginas de 'Fugir - O Relato de Um Refém' (R$ 98), história em quadrinhos recém-publicada no Brasil pela editora Zarabatana Books e escrita e desenhada pelo quadrinista canadense Guy Delisle a partir dos depoimentos de André.
A edição em português da HQ chega às livrarias brasileiras pouco mais de um ano após ter sido aclamada pela imprensa internacional como um dos grandes lançamentos de 2017. "Essa história real do sequestro de um homem na Chechênia confirma Guy Delisle como um dos melhores quadrinistas modernos", afirmou um crítico do jornal inglês The Guardian. É também o trabalho mais elogiado do artista, famoso por sua tetralogia de viagens composta pelas HQs 'Shenzhen - Uma Viagem à China', 'Pyongyang - Uma Viagem à Coreia do Norte', 'Crônicas Birmanesas' e 'Crônicas de Jerusalém'.
Produzido ao longo de 15 anos, 'Fugir' começou a tomar forma durante um jantar envolvendo amigos em comum de André e Delisle - esse último, casado com uma funcionária da Médicos Sem Fronteiras. Apesar do interesse do artista na história que seu colega de mesa havia vivenciado, ele achava que o tema seria um tabu, fruto de possíveis traumas decorrentes do sequestro. No entanto, André contou com detalhes sua história aos amigos e desconhecidos presentes no jantar.
"Aquilo foi tão fascinante que eu pensei: Uau, temos que transformar isso em história em quadrinhos. E ele falou: 'Claro, por que não?'", conta Delisle em entrevista ao UOL. "Levei bastante tempo, mas desde ali, desde o princípio, eu percebi que embora a maioria das pessoas que é sequestrada não goste de contar a experiência, esse cara era diferente porque ele tinha fugido. Como ele mesmo disse: 'Fugir é a melhor terapia'. Por isso ele não se sentia vítima nem nada do tipo. Se sentia inclusive mais forte do que antes do sequestro".
Delisle foca a maior parte de seus esforços no quadrinho em retratar a incapacidade de reação e os sentimentos de seu personagem com a falta de informações sobre sua situação. Ainda nos primeiros dias de seu cativeiro, André reflete como considera sua posição de refém pior do que uma possível temporada na prisão: "Na prisão você sabe o motivo de estar preso. Há uma razão, seja ela certa ou errada. Ser um refém é apenas má sorte, lugar errado, hora errada. Você não faz ideia de quando isso irá acabar".
À medida que os dias passam, André tenta estabelecer hábitos que auxiliam em sua rotina diária, na maior parte do tempo algemado ao cano de um aquecedor e sentado em um colchão. Ele inventa nomes para os sequestradores responsáveis pela sua alimentação e passa a rememorar batalhas famosas da história da humanidade, assunto de seu interesse, como um passatempo. Em um ou outro instante, ele cogita possíveis estratégias de fuga e cenários de confronto com seus sequestradores. Amigos e familiares e o vindouro casamento de sua irmã passam a ser tópicos proibidos em seus pensamentos.
O conteúdo narrado por Delisle no quadrinho foi fruto de um dia inteiro de conversa com André. Posteriormente, o quadrinista passou a enviar, periodicamente, entre 10 e 15 páginas ao amigo para seguir com o que vinha produzindo. Ao contrário de suas publicações prévias, narradas em primeira pessoa, sobre suas impressões dos países em que esteve a trabalho ou acompanhando a esposa, em 'Fugir' Delisle teve como principal desafio imaginar a situação vivida por sua fonte.
O fato de maior parte do livro se passar em uma sala vazia, sem nada além do colchão e do aquecedor nos arredores de André, facilitou o trabalho do quadrinista. Ele conta ter tirado fotos em seu estúdio, amarrado a um radiador e preso a uma algema, para tornar seu desenho mais realista. "Depois disso, quando ele foge e estamos na Chechênia, procurei imagens de vilarejos na Inguchétia e na Geórgia porque na internet, quando se procura Chechênia, só se encontra lugares fechados, nada externo", diz.
Habituado ao preto e branco em seus álbuns prévios, Delisle coloriu 'Refém' em variações de cinza e tons de azul. "O Christophe me dizia que ficou numa penumbra cinzenta. Não havia luz total no quarto, era sempre meia-luz, o tempo todo", conta o autor. Ainda assim, o maior desafio do artista foi se colocar no lugar de seu amigo.
"O Christophe diz: 'Com uma pressão dessas, você vira uma pessoa bem diferente'", conta o quadrinista. "Ele é um cara bem tranquilo e, quando pensa no que fez, é uma coisa que vai quase além da imaginação. Mas ele fez. E, como ele diz, você não é mais o mesmo. Você vira outra pessoa. Ou seja, você não sabe o que faria em uma situação tensa como aquela".
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