Como Eli Roth foi de mestre do terror ao infantil "O Mistério do Relógio"
A carreira de Eli Roth até agora tem sido sobre chocar o público. E no filme "O Mistério do Relógio Na Parede", que chega nesta quinta-feira (20) aos cinemas, não é diferente. "A nova forma de ser chocante é fazer um filme para crianças", provoca o americano de 46 anos em entrevista ao site "Vulture".
O choque, no caso, é porque o homem comandando uma das fantasias infanto-juvenis mais aguardadas do ano é o mesmo que consagrou, uma década e meia atrás, o subgênero de terror conhecido como "torture porn", com "Cabana do Inferno" e "O Albergue".
Termo cunhado pelo crítico David Edelstein, do "The New York Times", o "torture porn" se caracteriza por cenas extremas e explícitas de tortura física ou psicológica que são usadas para excitar o público. Após os brutais primeiros longas de Roth, o gênero trouxe pérolas como "Turistas" (de John Stockwell), "Cativeiro" (de Roland Joffé) e "A Centopeia Humana" (de Tom Six), entre outros.
E o que "O Mistério do Relógio da Parede" tem a ver com esses filmes? No novo longa do diretor, acompanhamos um jovem órfão (Owen Vaccaro, de "Pai em Dose Dupla") que passa a viver com o seu tio (Jack Black), e descobre que ele é um feiticeiro que está tentando impedir o apocalipse --sinalizado por um relógio escondido nas paredes da casa onde os dois moram.
Para Roth, a conexão entre o novo filme e seus clássicos é clara. "Quero dar ao público um novo 'Os Caçadores da Arca Perdida' [o primeiro filme da franquia 'Indiana Jones'], onde você tem cenas de ação excitantes como a corrida contra a pedra rolante, mas também rostos se derretendo e espíritos saindo do nada e esfaqueando as pessoas nos olhos. Isso é o divertido, misturar tons diferentes", diz.
É uma tentativa de resgatar o mistério e o perigo de clássicos dirigidos ou produzidos por Steven Spielberg nos anos 1980 --de "Caçadores" a "Os Goonies", "E.T. - O Extraterrestre" e "Gremlins", talvez até uma pitada do assustador "Poltergeist - O Fenômeno". Vale dizer que a produtora de Spielberg, Amblin Entertainment, também está envolvida em "O Mistério do Relógio da Parede".
O provocador
Roth nasceu na metrópole Boston, nos Estados Unidos. Seu pai era psiquiatra e sua mãe, pintora --ambos de herança judia, que ele mais tarde "honraria" ao interpretar o brutal soldado conhecido como "Urso Judeu" em "Bastardos Inglórios", do ídolo e amigo Quentin Tarantino.
Aos oito anos, Roth começou a fazer filmes junto com o irmão. Ele dirigiu mais de cem curtas-metragens caseiros antes de se formar no ensino médio e de ir estudar cinema na Universidade de Nova York. Em 1995, venceu o Oscar estudantil (estatueta oficial, concedida pela Academia) por "Restaurant Dogs", curta que homenageava "Cães de Aluguel", de Tarantino.
Durante e depois da faculdade, Roth trabalhou como atendente de cibersexo (se passando por mulher) para financiar os seus primeiros curtas. "Cabana do Inferno" foi escrito durante o seu estágio com o apresentador de rádio Howard Stern, e inspirado na ocasião de sua infância em que contraiu uma infecção de pele nojenta enquanto cavalgava na Islândia.
No filme, um grupo de amigos vai a uma cabana na floresta e se torna vítima de um vírus que come a pele, o que por sua vez atrai os degenerados moradores locais, sedentos por sangue. "Cabana do Inferno" custou US$ 1,5 milhão, e rendeu mais de US$ 30 milhões ao redor do mundo.
O sucesso se repetiu com "O Albergue", que mostra turistas sendo atraídos para um local onde, supostamente, terão todas as suas fantasias sexuais satisfeitas. Ao invés disso, são sequestrados e servem de cobaia para turistas ainda mais ricos torturarem.
Roth disse ter recusado propostas de grandes estúdios, após o sucesso do seu primeiro filme, para fazer "O Albergue". O cineasta ainda aceitou um corte em seu salário, recebendo US$ 10 mil para certificar que teria toda a liberdade de fazer o filme mais violento que quisesse.
Feito por US$ 4 milhões, o longa rendeu mais de US$ 80 milhões nas bilheterias mundiais, e causou muita discussão entre a crítica. Enquanto alguns elogiaram a criatividade e inovação do filme, críticos como Peter Bradshaw (do "The Guardian") o consideraram "tolo, nojento e de mau gosto --e não em um bom sentido".
O polemista
Roth retornou para dirigir "O Albergue 2" em 2007, mas o resultado financeiro não foi o esperado --o subgênero criado pelo cineasta já estava se retraindo para o mercado independente, e o filme vazou para download antes de sua estreia nos cinemas.
No caminho, ele produziu e dirigiu o episódio piloto de "Hemlock Grove", uma das primeiras apostas da Netflix em séries originais. "Essa série vai f**** toda uma geração", disse Roth na época. Foi uma previsão que não se concretizou, já que "Hemlock" não alcançou um grande público com sua mistura de terror trash e angústia adolescente.
No mesmo ano do lançamento da série, em 2013, Roth voltou aos cinemas com "Canibais". O cineasta construiu o filme, sobre turistas que se veem confrontados por um grupo de indígenas canibais na Amazônia, como uma grande homenagem a "Holocausto Canibal", dirigido pelo italiano Ruggero Deodato em 1980.
Quem conhece a lenda de "Holocausto Canibal" sabe que este não é um filme que se pode homenagear sem causar polêmica. Deodato foi pioneiro no estilo "found-footage", fingindo que seu filme era na verdade um documentário construído a partir das câmeras que um grupo de antropólogos levou para visita a uma tribo canibal.
Na época, os atores de Deodato assinaram acordos para se manter longe da vida pública, aumentando a credibilidade do filme como "factual". A estratégia foi tão eficiente que uma investigação formal foi aberta contra o cineasta, acusado de exibir mortes reais na tela.
A polêmica não acabou nem quando os atores apareceram, vivíssimos, em um tribunal italiano para inocentar o diretor. Isso porque foi revelado que as mortes de animais em "Holocausto Canibal" eram reais --o diretor matou dois macacos, uma cobra, um porco e mais alguns bichos para as cenas. O próprio Deodato diz, hoje em dia, que se arrepende do que fez para realizar o seu filme.
O cineasta
Os filmes posteriores de Roth exploraram gêneros diferentes, embora ainda com a assinatura do diretor. "Bata Antes de Entrar" (thriller psicossexual) e "Desejo de Matar" (ação) trouxeram o cineasta tentando polemizar com o uso de mensagens reacionárias ou conceitos antiquados, atacados por grupos ativistas nas redes sociais e críticos mais antenados na dimensão política do cinema.
"Desejo de Matar", estrelado por Bruce Willis, é remake do clássico de 1974 com Charles Bronson. Na trama, após um ataque brutal que o faz perder sua família, o Dr. Paul Kersey (Willis) toma a justiça em suas próprias mãos --e suas próprias armas, muitas delas.
O longa foi criticado por glorificar a violência com armas de fogo, em uma época na qual ataques mortíferos em escolas e outros lugares públicos são epidemia nos Estados Unidos. Roth se desviou dos questionamentos, dizendo que o seu filme era "sobre família, e sobre proteger a sua família".
O que esses filmes, com a adição de "O Mistério do Relógio na Parede", provam, é que Roth pode ser um diretor versátil, embora sua personalidade gigantesca "contamine" tudo o que ele faz, e embora alguns vícios e virtudes sejam imediatamente reconhecíveis em qualquer filme seu.
Ele também jura, na entrevista ao "Vulture", que "cresceu". "Olha, eu conheço a minha reputação. O que eu diria para as pessoas é que todo mundo cresce", comenta. "É só olhar para os seus astros do rock favoritos, a forma como eles se comportaram aos 20 anos e como se comportaram aos 40, quando se tornaram pais".
"Não estou deixando de dar crédito a nada do que fiz antes, mas em algum momento tudo aquilo [as estratégias de choque] ficaria velho", completa. "O Mistério do Relógio na Parede" responderá se o jovem mestre do trash realmente amadureceu ao fazer um filme infantil.
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