Como a pornochanchada falou do Brasil sob ditadura militar entre cenas de sexo
Brasil, anos 1970. Enquanto o país sofria a repressão no auge da ditadura militar, os filmes da pornochanchada arrastavam milhões de espectadores aos cinemas. Da porta das salas para dentro, o país visto na tela era alegre, sensual e safado, transbordando cores, palavrões e nudez. Do lado de fora, os mais politizados batiam, o que certamente colaborou para o que ficou registrado na história cinematográfica: uma era de produções ruins, alienantes e que serviam como puro escapismo.
Era essa a impressão da cineasta paulista Fernanda Pessoa quando cursava cinema na Faap, em São Paulo. "A gente passava muito rapidamente por essa época. 'Ah, os anos 1970 era pornochanchada, é muito ruim, assiste um ou outro para comprovar que é ruim mesmo'", conta.
Foi cuidando do acervo da filmoteca da faculdade, que abriga em sua maioria produções dessa época, que Pessoa se deparou com imagens fortes de um filme, onde pessoas apareciam nuas -- e sendo torturadas.
Eram cenas de "E Agora José? - Tortura do Sexo". O filme de 1979, dirigido por Ody Fraga, não é citado em nenhuma retrospectiva da época, mas foi o único dessa fase a expor a tortura de civis por grupos paramilitares, além de reencenar a morte do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975. Mais do que sexo explícito, era um fragmento da realidade da ditadura escancarada, enquanto filmes ditos mais sérios eram podados pelos censores.
"Ali eu percebi que tinha algo nessa filmografia que a gente não estava olhando. Por mais que 'E Agora, José?' tivesse vários problemas --tem uma visão erotizada da tortura, super complicada--, o filme fala de tortura e encena a morte do Vlado, ainda que na versão da polícia. E a gente não falava sobre isso, apenas que a pornochanchada era muito ruim."
Pessoa demorou alguns anos para entender o Brasil escondido nessas produções. Ao assistir a "Queda do Comunismo Vista pelo Pornô Gay", curta feito pelo americano William E. Jones usando cenas de filmes de sexo explícito para narrar o fim da União Soviética, se deparou com uma frase na tela: "Mesmo em um lugar improvável é possível encontrar traços da nossa história recente". Não seria diferente com a pornochanchada.
O caráter político dessa fase ganha agora uma experiência inédita, "Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava", dirigido por Pessoa e em cartaz nos cinemas. O filme, no entanto, foge da estrutura clássica de um documentário. Se trata de um belo esforço de montagem, onde cenas e diálogos de 27 filmes narram esse episódio da nossa história. Entre cenas de nudez e de sexo explícito, até os assuntos proibidos pela censura saíram do armário.
"Alguns filmes dessa época têm vocação política, tanto de esquerda quanto de direita, como os filmes de Antonio Calmon, mas outros estão ali porque acabam transparecendo o cotidiano, com a vida diária da classe média e da classe trabalhadora", explica a cineasta. "Eram filmes que não tinham nada a ver com política, mas usam o termo 'anistia' e fazem piadas com a inflação dentro do contexto da comédia. Estavam ali porque era o que todo mundo falava na época".
É como se o tesão e a fantasia do brasileiro incidissem diretamente de questões reais, como o machismo e as relações de poder, sem deixar de catalisar temas quentes das ruas, como o divórcio, o relacionamento homossexual e o êxodo rural.
"Havia uma vontade do povo de se ver ali na tela. Tem uma coisa muito brasileira, o mundo está acabando, o país está em crise democrática, política e econômica, e a gente está fazendo meme. É uma coisa muito brasileira dar risada da nossa própria desgraça", observa.
Não que os filmes dessa época passavam incólumes à censura. "Tem esse mito de que a ditadura gostava desses filmes porque eles eram despolitizados, alienantes e que ajudavam o povo a não olhar o que estava acontecendo, mas quando você vê os documentos dessa época, não foi bem assim", conta Pessoa. "Nem tanto a política, como era com os filmes do cinema novo, do cinema marginal, onde eles procuravam conteúdo subversivo, comunista. Ali, era uma questão moral, estavam atrás de coisas que eles julgavam que o povo não estava pronto para ver".
Cinco filmes da pornochanchada que vão além de nudez:
"Enterro da Cafetina", de Alberto Pieralisi (1971)
A história da cafetina que morre e deixa em testamento uma festa para os clientes não teve a mesma sorte e sofreu censura dupla: política e moral. Em uma cena, o personagem de Jece Valadão faz referência à UDN (União Democrática Nacional), extinta pelo governo militar que assumiu o poder no golpe de 1964, e chama os policiais na delegacia de "subdesenvolvidos". A cena foi repreendida, junto com outro momento, quando Valadão urina na rua.
"E Agora José? - A Tortura do Sexo", de Ody Fraga (1979)
Tem a cena literal da morte do jornalista do Vladimir Herzog. Ele aparece enforcado em uma cela, pendurado na janela por uma gravata amarrada no pescoço. Na trama, é identificado como "o jornalista". "Eles contam a versão 'oficial' da polícia, como se ele tivesse se matado. Esse grupo que realiza essas torturas é chefiado por um homem identificado como capitão. É muito claro, é obviamente um grupo paramilitar", observa Pessoa. Ainda assim, passou ileso pela censura.
"Aventuras Amorosas de um Padeiro", de Valdir Onofre (1975)
Com produção de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), é um filme que brinca com a própria fama da pornochanchada com o título. "Mas as aventuras amorosas não são do padeiro", revela Pessoa. "É sobre uma mulher suburbana, Ritinha (Maria do Rosário), que casa virgem e percebe que não queria mais aquela vida". O filme trata a questão do racismo e fala explicitamente sobre aborto, sem julgar a personagem. "É um dos primeiros filmes dirigidos por um diretor negro no Brasil. Traz esse imaginário da comédia popular para fazer uma crítica social. É um filme anárquico, mas ainda assim, uma comédia popular".
"O Bom Marido", de Antonio Calmon (1978)
Afraninho (Paulo César Peréio) leva uma vida de alto padrão com a mulher Malu (Maria Lúcia Dahl), quando percebe que seus negócios vão mal. A solução mais rentável? Oferecer sua mulher a clientes estrangeiros. Mas o filme vai além da nudez explícita, com o casal principal se pegando na lama. "Faz crítica social forte à meritocracia, à entrada de capital estrangeiro e à relação de classes. Além de ser super engraçado e bem dirigido", comenta Pessoa.
"Noite em Chamas", de Jean Garrett (1978)
Rebento do cinema da boca do lixo, em São Paulo, é considerado um "pornô social". A história se passa em um hotel na República, no Centro da capital paulista, onde o espectador acompanha um gringo africano que quer instaurar uma nova religião para "dominar os países de Terceiro Mundo" e um funcionário revoltado com o patrão após um colega perder um dedo durante o trabalho. Maria Luiza Dahl brilha no papel de uma atriz de pornochanchada com uma autoconsciência grande sobre feminismo e o papel imposto da mulher na sociedade.
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