Autora de livro criticado por Bolsonaro rebate: "No fundo, ele queria ter ganhado um"
Nos últimos dois dias, um livro infantojuvenil fora de catálogo e pouco conhecido por aqui ganhou os holofotes - e as buscas no Google - depois que o deputado e candidato à presidência da República Jair Bolsonaro levou um exemplar à bancada do "Jornal Nacional", onde estava sendo entrevistado por William Bonner e Renata Vasconcellos. Para o candidato, "Aparelho Sexual e Cia.", escrito pela francesa Hélène Bruller e ilustrado por Zep, "estimula precocemente as crianças para o sexo" e "escancara as portas da pedofilia".
Bolsonaro afirma que o livro, lançado no Brasil em 2007, foi comprado pelo governo do PT na época e incluído na lista de títulos distribuídos a escolas e bibliotecas públicas. Em nota, a editora Companhia das Letras, que publicou a obra aqui, admite que a ofereceu como indicação para alunos do 6º ao 9º ano (de 11 a 15 anos), mas que o título nunca foi "comprado pelo MEC, como tampouco fez parte de nenhum suposto 'kit gay'. "O Ministério da Cultura comprou 28 exemplares em 2011, destinados a bibliotecas públicas", continua o comunicado.
O imbróglio todo não é novidade para Hélène Bruller. Autora de 13 livros, publicados por grandes editoras na França, como Albin Michel, Delcourt e Glenát - que publicou originalmente "Aparelho Sexual" -, Bruller revela, em entrevista ao UOL, que recebe críticas pela obra há "pelo menos 18 anos". Ciente dos ataques recentes de Bolsonaro, a autora diz que prefere acreditar que seus "detratores" sabem que "ao falarem mal de um livro, estão fazendo propaganda dele".
"Querem banir, mas inconscientemente, eles querem promover. Acho que, lá no fundo, tem um garotinho, um pequeno Jair, que teria adorado ganhar de presente de seus pais [um exemplar do livro] 'Aparelho Sexual e Cia.', em vez de ouvi-los gritar com ele, a face distorcida de raiva e baba nos lábios: 'Jair! Se você se masturbar, irá para o inferno!'", provoca.
Leia a seguir, trechos da entrevista feita por e-mail com Bruller nesta quinta-feira (30).
UOL - Você está a par do que está acontecendo no Brasil, envolvendo seu livro?
Hélène Bruller - Obviamente! Desde esta manhã, estou recebendo muitos pedidos de entrevistas de jornalistas. Fico positivamente surpresa com essa reação.
"Aparelho Sexual e Cia" foi lançado originalmente em 2001. Você enfrentou críticas semelhantes na França ou em outros países onde o livro tenha sido publicado?
O livro foi banido por pelo menos 18 anos em Valais, um reduto católico na Suíça. Claro, essa medida teve o efeito imediato de fazer com que todos os jovens com menos de 18 anos corressem às livrarias dos povoados vizinhos. Eu deveria provavelmente agradecer a Valais pela promoção não intencional do meu trabalho.
Também devo expressar minha gratidão aos extremistas religiosos que, por duas vezes, tentaram censurar exposições [baseadas no livro] de "Aparelho Sexual" na Cidade das Ciências [em Paris] -- essa técnica de marketing muito eficiente conseguiu dobrar o número de público nas exposições.
Claro, estou brincando, não tenho intenção de agradecer essas pessoas que representam o obscurantismo promovido pelo Sr. Bolsonaro em seu lindo país. Mas ainda assim estou surpresa, porque penso que esses detratores, e o Sr. Bolsonaro é um deles, não deixam de saber que ao falarem mal de um livro, eles estão fazendo propaganda dele.
Eles sabem disso, pode acreditar. Querem banir, mas inconscientemente, eles querem promover. Acho que, lá no fundo, tem um garotinho, um pequeno Jair, que teria adorado ganhar de presente de seus pais [um exemplar do livro] "Aparelho Sexual e Cia.", em vez de ouvi-los gritar com ele, a face distorcida de raiva e baba nos lábios: "Jair! Se você se masturbar, irá para o inferno!"
Qual foi sua intenção quando decidiu criar esse livro com [o desenhista suíço, e ex-marido] Zep?
Esse é o livro que eu queria ter lido quando era pequena. Não faltam respostas no mundo sobre sexualidade e, infelizmente, com a internet e o acesso livre a informação, as crianças têm acesso a pornografia. Esse livro tenta contar [a essas crianças] que a sexualidade que elas vão descobrir algum dia pode ser linda e saudável, o oposto da pornografia; que ela está intimamente ligada ao amor, e que amar o próximo é o caminho para o despertar da sexualidade; que amar o outro deve começar com amar a si mesmo, respeitar a si mesmo, para então ser respeitado.
Penso que dizer às crianças que o interesse delas em assuntos sexuais é uma curiosidade saudável, responder perguntas que às vezes as assustam como "como se beija?", por exemplo, não significa lançá-las para a sexualidade mais cedo. Ao contrário, vai acalmar sua curiosidade.
Que público você tinha em mente quando decidiu escrever o livro?
Todas as crianças, sem idade. Penso que determinar um limite de idade para um livro como esse é perigoso. Acho que é responsabilidade dos pais decidir o que dão para suas crianças. Existem crianças de 11 anos que ainda não estão prontas para fazer questionamentos sobre sexualidade, para quem esse assunto ainda não desperta interesse. Mas há outras, de 8 anos, que estão pressionando seus pais por respostas.
Cada criança é diferente e eu acredito que as pessoas que as conhecem melhor são seus pais. Meu sonho é que não exista limite de idade impresso nos livros e que os vendedores se acostumem a dizer: "Folheie o livro, leia alguns trechos e veja se o seu filho tem a maturidade para consultá-lo".
Que abordagem você escolheu no livro para tratar de assuntos como sexualidade, doenças venéreas e abusos sexuais contra crianças?
Tive uma única regra: a sinceridade. Eu penso que você pode dizer a verdade para uma criança, mas você não pode dizer tudo. Penso que se alguém tem uma percepção serena da sexualidade, ele vai encontrar as palavras certas [para falar disso] sem sofrer. As partes a censurar vão aparecer por si só.
Quanto à linguagem [usada no livro], sempre percebi que para assuntos delicados como esse, você precisa aprender a ser claro, a sacrificar o orgulho de autor, o seu estilo literário. Se leio [nas críticas nos jornais] que eu escrevo errado, o que quero é que a criança que leia encontre as respostas imediatamente.
Quem deve decidir o que pode ou não ser falado para as crianças sobre sexualidade? Os pais? O estado? Os artistas?
Creio que a gente deva deixar que os pais façam seu trabalho como educadores. Sim, há lugares em que o assunto de sexualidade é tabu, há lares em que a comunicação é mais solta, e isso torna o nosso mundo um espaço de diferenças culturais mais bonito.
Acredito que, em primeiro lugar, a gente deva parar de confundir "sexualidade" com "falar sobre sexualidade". Falar sobre sexualidade é apenas informar, confortar para mais tarde, para o dia em que essas crianças terão se tornado adultas e estarão prontas para viver sua sexualidade.
Pessoas como Jair Bolsonaro querem controlar através da ignorância. A história da humanidade nos mostra que isso não é bom.
Você tem filhos? Como você lida com essas questões em casa? Eles leem os seus livros?
Tenho dois filhos que, hoje, são adolescentes. Eles são livres, sempre foram, para fazer as perguntas que quiserem. E eu sempre respondo. Resultado? Eles não são precoces com relação ao sexo. Sinto que eles querem dar o seu tempo, esperar para que seja bonito, para que seja com a pessoa certa. Por quê? Porque eles sabem do que a gente está falando!
Quando a gente não sabe alguma coisa, por um momento, para saber mais, a gente sente a tentação de ir atrás! E é aí que eu acho que a gente se leva a situações desoladoras, como jovens meninas fazendo sexo cedo demais, com jovens que elas não gostam, por inocência, ignorância, tudo misturado a desejos para receber respostas.
Esconder algo das pessoas para protegê-las produz o efeito oposto. Informe-o, dê a ele elementos para aprender a se proteger por conta própria. E todo mundo sabe disso hoje. Eu acho que querer manter as crianças numa ignorância medieval sobre sexualidade é uma maneira de retomar o controle sobre as mulheres. Mas as mulheres do mundo de hoje não vão retroceder. Elas estão aí para ficar, ainda bem.
Você citaria outros exemplos de livros ou personagens infantis que tratam da sexualidade de maneira positiva? Usou algum como referência?
Não. Nenhum trabalho. Nunca tive interesse em livros dos outros sobre esse assunto porque sempre os achei entediantes e hipócritas. Ensinar crianças de 10 anos os nomes dos hormônios reprodutivos, sobre os diferentes estágios de desenvolvimento fetal, sobre o nascimento de uma criança, sem nunca ter explicado como isso pode acontecer de verdade com elas? Fala sério!
Pretende processar Bolsonaro pelas afirmações que ele faz sobre seu livro?
Não. Acredito que ele já seja perseguido por seus próprios demônios.
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