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Produtoras preparam cartilha para combater assédio sexual no audiovisual brasileiro

Atrizes globais se engajaram em campanha contra o assédio em 2017 após denúncia contra o ator José Mayer - Reprodução/Instagram
Atrizes globais se engajaram em campanha contra o assédio em 2017 após denúncia contra o ator José Mayer Imagem: Reprodução/Instagram

Beatriz Amendola

Do UOL, em São Paulo

22/08/2018 04h00

Mais de um ano após uma denúncia de assédio sexual contra o ator José Mayer abalar a Globo e engajar famosas e anônimas em uma campanha que movimentou a internet brasileira, produtoras e entidades do audiovisual no país se preparam para lançar, entre o fim de agosto e começo de setembro, uma cartilha para prevenir e combater o assédio sexual na indústria --na esteira de iniciativas que deram o que falar em Hollywood, como o #MeToo e a Time's Up.

Fruto de um pacto assinado no começo de julho por produtoras como a O2 e a Conspiração e organizações como Apro (Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais) e os sindicatos do setor, o documento propõe medidas em três eixos de atuação, de acordo com representantes de entidades ouvidas pelo UOL:

  • Prevenção: ações para conscientização sobre o tema, com informações disseminadas por meio de workshops, palestras e ações em parceria com sindicatos.
  • Intervenção: estabelecimento de uma ouvidoria para apurar casos. A cartilha propõe que, logo que uma nova produção comece, alguém seja designado para ficar responsável por receber essas denúncias. A recomendação é de que sejam duas pessoas, uma mulher e um homem, já que as denúncias partem de ambos os gêneros. A cartilha ainda estabelece uma atuação em conjunto com os sindicatos para acompanhamento dos casos.
  • Proteção: punição dos casos por meio de vias legais para garantir a não-reincidência.

Seguir as diretrizes estabelecidas pelo pacto e pela cartilha não será obrigatório para os signatários, mas Marianna Souza, gerente executiva da Apro, vê a iniciativa como passos importantes para mudar a cultura dentro da indústria. "A gente percebeu que existe um total desconhecimento do assédio. Situações que há cinco anos eram aceitáveis, brincadeiras, normais, hoje em dia não são mais. E as pessoas têm hoje um pouco mais de discernimento em relação a isso. A gente está propondo quase uma mudança de cultura desse setor".

Essa nova postura deve ficar clara logo nos contratos dos funcionários. Segundo Sonia Santana, presidente do Sindcine (Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica e do Audiovisual), que representa os funcionários técnicos do setor, os documentos dos contratados terão uma cláusula específica sobre assédio sexual. "O técnico vai ser informado [no momento do contrato]. E nós fizemos, por conta disso, convênio com grupo de psicólogos para atendimento do assediado e do assediador. Fizemos esses convênios para acompanhamento, porque é um momento muito difícil".

A lei e a cartilha

De acordo com o código penal brasileiro, o assédio sexual pressupõe a hierarquia profissional, já que é definido nos seguintes termos: "Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função".

A cartilha também levará em consideração casos que aconteçam entre colegas ou pessoas que não tenham relação hierárquica entre si. "A grosso modo, todo caso que for entendido como assédio, as empresas terão um canal para apurar", explica a advogada Magda Hruza, do Sicav (Sindicato da Indústria Audiovisual do RJ). "Esse é o objetivo maior, que não haja constrangimentos sofridos por quem é vítima. O que a gente está preocupado é em coibir comportamentos que se repudiem, do ponto de vista de abusos no sentido do desrespeito sexual".

O documento ainda contará com a relação dos órgãos públicos federais e estaduais que devem ser acionados caso necessário, como o Ministério Público.

Como começou o pacto

Pode ser fácil associar o pacto ao escândalo do megaprodutor Harvey Weinstein, acusado de abuso e assédio por várias celebridades. Mas sua origem remonta a uma denúncia que abalou a maior emissora de TV no país: a da figurinista Su Tonani contra o ator global José Mayer.

Tonani revelou o assédio que sofreu por parte do ator em um texto publicado no blog #AgoraÉQueSãoElas, da "Folha de S. Paulo". Seu relato fez com que artistas, jornalistas e anônimas se engajassem no movimento "Mexeu com uma, mexeu com todas", e Mayer foi parar na geladeira da Globo --da qual ainda não tem previsão de sair.

Antonia Pellegrino - Reprodução Facebook - Reprodução Facebook
A roteirista Antonia Pellegrino deu início a processo que levou ao pacto antiassédio
Imagem: Reprodução Facebook

Após a denúncia, Antonia Pellegrino, escritora, roteirista e uma das curadoras do blog, passou a receber vários relatos de casos semelhantes. Um deles que viria meses depois, uma acusação de estupro contra o ator Thogun, foi o estopim para que ela resolvesse lançar uma provocação a outros colegas da indústria.

"Tem que haver o mínimo de regras para um caso de violência, porque acontece muito", diz. Para as vítimas, denunciar ainda é difícil, seja porque nem sempre o crime de assédio deixa provas, como pelo fato de que não há um caminho claro para fazer isso. "Não tem uma regulação que dê um tratamento básico para isso, em que a vítima saiba como proceder, do ponto de vista legal, que tenha um encaminhamento prático. Depende da boa vontade das pessoas hoje".

No fim de 2017, a roteirista então lançou, pelas redes sociais, o vídeo com a provocação --coincidentemente, um dia antes da revista "Time" eleger as "silence breakers", as mulheres que denunciam seus abusadores, em sua edição especial de pessoa do ano. A ideia foi bem recebida e, de uma reunião presencial com representantes do mercado já no começo deste ano, saiu um grupo de trabalho disposto a discutir a questão, composto por produtoras e entidades. 

Na capa principal de personalidade do ano da revista TIME de 2017 estão cinco mulheres que simbolizam a campanha contra o assédio sexual: a atriz Ashley Judd, a cantora Taylor Swift, a lavradora Isabel Pascual (pseudônimo), a lobista Adama Iwu e a ex-engenheira do Uber Susan Fowler. - Reprodução TIME - Reprodução TIME
Em 2017, a revista "TIME" elegeu como personalidades do ano mulheres que simbolizam a luta contra o assédio sexual: a atriz Ashley Judd, a cantora Taylor Swift, a lavradora Isabel Pascual (pseudônimo), a lobista Adama Iwu e a ex-engenheira do Uber Susan Fowler
Imagem: Reprodução TIME

Para chegar ao pacto, o grupo buscou referências que foram da legislação brasileira às iniciativas antiassédio divulgadas no início do ano pelo Sindicato dos Produtores dos Estados Unidos. Também foi usado como base um estudo feito pela entidade Grupo de Planejamento, que investigou o assédio sexual o mercado da comunicação. Na pesquisa, 51% das mulheres e 9% dos homens disseram já ter sofrido assédio no ambiente de trabalho.

Impacto

A ideia, segundo Marianna Sousa, da Apro, é que a cartilha seja lançada com uma série de ações educativas, incluindo uma campanha publicitária que ajude a conscientizar sobre o tema. "A partir do momento que tem uma cartilha, uma educação, de sensibilização do tema, que pode ter sim uma punição legal, não tem como a pessoa falar eu não sabia. Nossa linha de atuação está muito mais pautada nesse aspecto de prevenir, cuidar, do que de 'caça às bruxas'. Estamos falando de uma mudança de cultura".

Para Andrea Barata Ribeiro, da O2, a adoção dos princípios da cartilha pelas produtoras deixará claro que o assédio não é aceitável no ambiente de trabalho. "Adotar a cartilha será nossa forma de mostrar que não toleramos esse tipo de comportamento. Mas acredito que grande parte das pessoas irá aderir à cartilha. Todos estão vendo isso com muito bons olhos".

A O2 enfrentou de perto uma situação do tipo este ano. Um técnico tirou fotos da atriz Paola Oliveira enquanto ela se trocava nos bastidores da série "Assédio" e as divulgou em um grupo de WhatsApp. O processo contra o profissional ainda segue na Justiça, e a repercussão do caso, segundo Andréa, mostra que já há uma mudança em curso. "O que me faz sentir melhor é que a maior parte do mercado de técnicos rechaçou esse comportamento. Acredito que essa pessoa deve estar tendo muita dificuldade de trabalhar novamente. Comportamentos como esse não são aceitáveis."

As vítimas poderem contar com um caminho estabelecido para possibilitar as denúncias também será importante, acredita Antonia Pellegrino. "Tudo foi criado para tirar a vítima do canto do quarto escuro", afirma. "A vítima tem que poder ter voz, se sentir acolhida, ter com quem falar e isso ser um procedimento padrão."

O sistema atual, nota a roteirista, não encoraja que as mulheres denunciem, o que ela aponta como o principal fator para que, após a denúncia contra José Mayer e o movimento "Mexeu com uma, mexeu com todas", não tenha se seguido uma onda de relatos, como a que aconteceu nos EUA e envolveu outros nomes além de Weinstein, como o ator Kevin Spacey e o diretor Lars Von Trier.

"Acho que isso se deve a uma estrutura aqui que é muito mais difícil para a mulher. Observando como essa estrutura funciona, foi que eu tive essa iniciativa de repactuar de alguma maneira e cria um ambiente onde uma outra cultura menos machista possa florescer. Essa é a grande pergunta: por que não houve uma série de denúncias? Porque as pessoas têm medo. E com razão, infelizmente".

Além da possibilidade de enfrentarem um processo de difamação, as mulheres que denunciam também podem sofrer julgamentos, seja do público geral ou de seus pares na profissão, lembra Antonia. "[Há] a reação do público, de como as pessoas tratam essas vítimas no trabalho depois de uma denúncia. Há uma série de coisas que, para a vida de uma mulher que se propõe a isso, é complicado. Não é simples, não".