"Castle Rock" entende o horror de Stephen King melhor do que qualquer filme
O ano de 2017 foi de Stephen King no cinema e na TV. "It: A Coisa" quebrou recordes de bilheteria para um filme de terror e a primeira temporada de "Mr. Mercedes" no canal americano Audience foi bem elogiada. Até a Netflix entrou na onda, com “Jogo Perigoso” e “1922”. Nem mesmo os fracassos da série “O Nevoeiro” e do filme “A Torre Negra” diminuíram a certeza em Hollywood de que o velho King ainda pode render um bom caldo.
E o bom momento segue em 2018, com “Castle Rock”, do serviço de streaming Hulu. A série conta uma história original, mas passada no mesmo universo das obras de King. Não faltam referências, das mais sutis às mais explícitas (como uma personagem que é sobrinha de Jack Torrance, protagonista de “O Iluminado”), mas elas não são essenciais para entender a trama.
Boa parte do sucesso de “Castle Rock” se deve ao produtor J.J. Abrams, porque ela não se contenta em ser apenas uma série de horror - ela é uma série de mistério.
Abrams ama colocar grandes enigmas em suas narrativas (embora às vezes a resolução desse mistério seja decepcionante para muitos fãs, como aconteceu com "Lost") e a forma como isso é construído gera uma cumplicidade com o espectador. Para uma adaptação de Stephen King, nada poderia ser mais adequado.
“Este lugar desumano cria monstros humanos”
A famosa frase acima, repetida durante “O Iluminado”, é o ponto crucial da obra de King. Quando se trata do autor, é comum ouvir que suas histórias são magistrais porque “seus monstros são humanos”. A máxima não é mentirosa, mas é incompleta - a genialidade de King está em entender que, se seus monstros são humanos, sua monstruosidade precisa, necessariamente, ser social. Sejam demônios, assassinos, alienígenas ou qualquer outra sorte de assombração, os seus vilões foram formados por (ou refletem em si) males sociais que transformam pessoas comuns em monstros todos os dias, no mundo real.
O vilão de “Castle Rock”, o jovem sem nome interpretado por Bill Skarsgard (o Pennywise de "It: A Coisa"), é eficiente em expressar essa essência de King. A série não deixa claro o quanto do mal que ele causa é intencional e o quanto está fora de seu controle. Ele parece simplesmente ter o efeito de levar as pessoas à violência, às últimas consequências de uma angústia que já estão sentindo. Quando “Castle Rock” finalmente revela um ato intencional do personagem (no sexto episódio!), sua motivação é tão visceral, humana e emocional que fica difícil conciliá-la com a força maligna que ele demonstra.
“Castle Rock” empresta seu título da cidade onde a história se passa, para onde o advogado Henry Deaver (André Holland, excepcional) retorna décadas depois de uma tragédia em sua juventude, a fim de representar um jovem (Skarsgard) encontrado em uma jaula secreta da prisão local, Shawshank (a mesma do filme “Um Sonho de Liberdade”, adaptado do conto “Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank”, de King).
O retrato que os roteiristas Sam Shaw e Dustin Thomason fazem de Castle Rock, a cidade, é de dependência econômica e angústia cultural. Como de costume, King vê uma pequena localidade dos EUA como o palco no qual o “sonho americano” inevitavelmente expõe suas rachaduras.
Nos flashbacks da infância do protagonista Deaver, um homem negro que foi adotado quando criança pelo casal de pastores locais, o ressentimento racial da cidade quase inteiramente branca é um elemento inconfundível da narrativa. A mãe do rapaz, Ruth (Sissy Spacek, voltando a King após a performance inesquecível em “Carrie, a Estranha”), batalha contra a demência e o Alzheimer em uma região ignorada pelo sistema de saúde, estatal ou privado. E o atual namorado dela, Alan (Scott Glenn), precisa fazer as pazes com a herança de fechamento emocional e trauma psicológico que uma carreira no mundo ultra-masculino da polícia lhe deixou.
A chegada do estranho personagem de Skarsgard, com o seu poder de tirar o pior das pessoas, é meramente a gota d’água que faltava para estourar uma barragem de horrores sociais.
Liberdade com o novo
Outra ótima adaptação de Stephen King retorna para a TV nesta quarta-feira (22): “Mr. Mercedes” estreia sua segunda temporada, continuando a adaptação de uma trilogia do mestre do terror sobre um assassino (Harry Treadaway) que usa um carro luxuoso para atropelar dezenas de pessoas na fila do desemprego. Bem escrita, dirigida e atuada, ela também entende a dimensão social da narrativa de King, mas tem um campo limitado para brincar com isso. Presa pela história que conta e as possibilidades dela, consegue ser uma grande série, mas não um tributo compreensivo às habilidades do escritor.
Essa limitação não é problema para “Castle Rock”, e por isso é que ela parece funcionar melhor do que qualquer adaptação recente da obra de King. Não só ela tem a liberdade de criar uma trama nova que incorpore temas e elementos de diferentes títulos da longa bibliografia do autor, como também se propõe a contar uma história diferente por temporada, à la “American Horror Story”, aumentando ainda mais seu escopo e suas possibilidades. É útil pensar em “Castle Rock” como a versão televisiva e literária de um sample musical, se samples se preocupassem em trazer a essência da faixa que referenciam além de trechos específicos dela.
Stephen King não vai embora tão cedo do cinema e da TV. “It: A Coisa, Capítulo 2” está marcado para 6 de setembro de 2019, completando a história das crianças de Derry, agora crescidas, lutando contra o palhaço Pennywise. Um novo “Cemitério Maldito” vem por aí, assim como uma adaptação de “Doutor Sono”, continuação de “O Iluminado”. “In the Tall Grass”, “Buick 8” e mais títulos de sua autoria também estão a caminho do cinema.
Conforme a obra desse grande artista da literatura popular é minada por Hollywood para continuar criando um legado igualmente robusto nas telas, “Castle Rock” serve mais como testamento completo de toda a potencialidade de seus temas, de seus personagens e de sua relevância social do que qualquer filme feito às custas de seu gênio.
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