Os detalhes que fazem Amy Adams e Nicole Kidman as melhores atrizes da TV
Nas primeiras cenas de “Sharp Objects”, minissérie da HBO que chegou a seu sexto episódio de oito neste domingo (12), observamos uma jovem Camille (Sophia Lillis) andar de patins pela pequena cidade de Wind Gap, no interior dos Estados Unidos. Após se infiltrar em uma mansão aparentemente vazia, ela entra em um dos quartos e estende a mão para tocar em uma figura deitada na cama. Descobrimos, em uma reviravolta desorientadora, que se trata também de Camille, décadas mais velha, agora interpretada por Amy Adams.
A sequência metafórica unindo passado e presente no começo da minissérie, dirigida com rigor estético impecável por Jean-Marc Vallée, pode parecer estar aqui apenas como dispositivo de localização do espectador na trama, ou estabelecedor climático da peça de televisão a qual pertence - mas as aparências enganam. Para a história de Camille, e de “Sharp Objects”, essa conexão entre passado e presente é muito mais real e mais fundamental do que isso. Os traumas que ela carrega, os demônios “nem remotamente derrotados” (em suas próprias palavras, no episódio seguinte) que traz em sua bagagem, se ligam diretamente com a menina que um dia ela foi, o tipo de menina que um dia ela foi, e o que o mundo em que ela cresceu rotineiramente faz com essas meninas.
Adams, cinco indicações ao Oscar na bagagem, compreende e expressa essa Camille da forma que só uma gigante em sua área seria capaz de fazer. O rosto familiar da atriz, que já vimos em tantos grandes filmes (e outros nem tanto), se contrai em perpétua tensão e estupor (a personagem é alcoólatra), e os movimentos dela em cena não são só lentos, característica óbvia de quem anda por aí em constante estado de ressaca - por alguns segundos de cada vez, eles parecem também sem direção. Camille nunca parece saber o que está fazendo ou o que vai fazer a seguir; mesmo quando, efetivamente, sabe, como nas cenas em que aparece tentando exercer sua profissão de repórter e investigar o caso de duas garotas desaparecidas em Wind Gap.
Conforme a série mergulha no passado de Camille, incluindo sua batalha constante com a automutilação e o trauma da morte da irmã quando era jovem, sublinhado pela atitude fria e dura da mãe, Adora (Patricia Clarkson, estupendamente odiável), as entrelinhas da performance de Adams ficam claras. Outro detalhe que ela compreende profundamente é o quanto coisas que mal significam algo para nós todos (alguém não muito significativo na nossa vida elogiando nossa aparência, por exemplo) tem uma síntese diferente para Camille e sobreviventes como ela. Em retrações, meio sorrisos e gestos pequenos, Adams encontra esses significados e os transmite de forma que, mesmo sem o espectador perceber, o faz se afeiçoar a essa mulher tremendamente vulnerável e corajosa que, em uma situação mais real e menos passiva do que a de imagens passando na nossa tela, talvez não conseguíssemos enxergar.
É aí que o paralelo com a atuação de Nicole Kidman na primeira temporada “Big Little Lies” é inevitável. É verdade que muitas linhas foram traçadas entre a produção do ano passado e “Sharp Objects” - tratam-se de suas minisséries bem-sucedidas da mesma emissora, ambas baseadas em um best-seller e protagonizadas por mulheres que estamos acostumados a ver no cinema, e não na TV. Nem todos esses paralelos foram justos, já que “Sharp Objects” é um animal completamente diferente de “Big Little Lies”. Aqui, a sutileza e desconstrução de estereótipos de Liane Moriarty viram a brutalidade e a caricatura de Gillian Flynn, e os detalhes técnicos de cada produção acompanham estas diferenças fundamentais, que não devem ser confundidas com méritos e deméritos (há mais de uma maneira de contar uma boa história, afinal).
Entre as performances de Adams em “Sharp Objects” e de Kidman em “Big Little Lies”, no entanto, a comparação faz sentido. No ano passado, Kidman conquistou praticamente todas as premiações da televisão pelo papel de Celeste, uma das donas de casa riquíssimas da minissérie da HBO. Descobrimos, com o passar dos episódios, que ela vivia um relacionamento abusivo com Perry (Alexander Skarsgard), seu marido. Também nesse retrato de uma mulher traumatizada, Kidman usou de sua compreensão profunda dos detalhes mais sórdidos desse abuso para criar um desempenho de comoção inescapável.
Já um ano e meio removida de sua primeira transmissão na TV, a performance de Kidman é muito lembrada pelas cenas em que Celeste se consulta com a terapeuta Dra. Reisman (Robin Weigert), inicialmente procurada pelo casal para tentar resolver os conflitos violentos que marcam a relação. É absolutamente inegável que, nessas passagens, Kidman faz um retrato desesperador de uma mulher lentamente precisando admitir para si mesma o que já sabia (que o seu relacionamento não é normal e nem passível de “salvação”, e que seu marido é um homem violento).
É de praxe notar como a atriz australiana contrai a postura, busca sentir seus arredores com as mãos, à procura de conforto, e puxa discretamente as mangas da blusa, buscando esconder um hematoma que pode ou não estar ali - e é impossível não lembrar, à luz de “Sharp Objects”, como a Camille de Amy Adams faz quase o mesmo, usando roupas de mangas compridas e calças para esconder o corpo marcado por cicatrizes. Amas ocultam marcas físicas que, caso expostas, revelariam verdades que vão além da pele.
Outra cena de “Big Little Lies” sempre me vem à mente quando penso na Celeste de Kidman, no entanto. Ela acontece dentro de um carro, logo após a personagem ajudar a sua melhor amiga, Madeline (Reese Witherspoon), com um problema legal envolvendo a prefeitura local e a peça de teatro que ela quer montar. Celeste, que não havia exercido a profissão para a qual é treinada (a de advogada) há anos graças a pedidos insistentes de seu marido, aos poucos extravasa quantidades inimagináveis de ansiedade, euforia, arrependimento e angústia, percebendo ao mesmo tempo o quanto ama o seu trabalho, o quanto sentiu falta dele, e o quão difícil será conseguir voltar a exercê-lo, se quiser.
Assistir ao que se passa no rosto e no corpo de Kidman naquele momento, sua expressão da mulher que Celeste poderia ser, é quase como ver, em forma analógica, aquela metáfora visual do começo de “Sharp Objects” - e tem quase exatamente o mesmo efeito. Usando dois caminhos diferentes, a HBO e duas das melhores intérpretes de suas gerações transmitem a tragédia do potencial interrompido de duas mulheres abusadas, e o caminho árduo que elas enfrentam para finalmente, quem sabe, realizá-lo.
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