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Picasso da China: Museu em PE guardava sem saber quadro de R$ 3 milhões

O pintor chinês Chang Dai-chien, conhecido como "Picasso da China", no Jardim das Oito Virtudes, em São Paulo - Wang Ze-I
O pintor chinês Chang Dai-chien, conhecido como "Picasso da China", no Jardim das Oito Virtudes, em São Paulo Imagem: Wang Ze-I

Guilherme Gorgulho

Colaboração para o UOL

12/07/2018 15h54

A China ganha cada vez mais espaço na economia do Brasil, mas ainda há um fosso quando o assunto é cultura. O mais famoso pintor chinês do século 20, Chang Dai-chien (1899-1983), por exemplo, é virtualmente desconhecido no país que escolheu para se exilar na década de 1950. Conhecido no Ocidente como o "Picasso da China", ele é um dos mais valorizados artistas no mercado global de artes.

Ele ocupa, desde 2017, o 3º lugar entre os artistas mais bem-sucedidos do mundo em leilões, perdendo somente para Pablo Picasso e Andy Warhol. Até agora, havia apenas um quadro dele em um museu brasileiro, na Pinacoteca Ruben Berta, de Porto Alegre, mas a reportagem do UOL localizou outra obra que estava há décadas sem identificação na reserva técnica do MAC (Museu de Arte Contemporânea) de Pernambuco, em Olinda.

Fotografia do quadro "Paisagem Suíça", do pintor chinês Chang Dai-chien, no acervo do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco - Daniela Nader/UOL - Daniela Nader/UOL
O quadro "Paisagem Suíça" no acervo do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco
Imagem: Daniela Nader/UOL

Avaliado pela casa de leilões Christie's de Hong Kong em US$ 800 mil, o equivalente a cerca de R$ 3 milhões, o quadro "Paisagem Suíça" foi pintado, em fevereiro de 1966, provavelmente em Mogi das Cruzes, na região metropolitana de São Paulo, onde Chang vivia em um idílico sítio batizado de Jardim das Oito Virtudes.

"Paisagem Suíça" mede 1 m x 1,32 m e foi doado pelo pintor, calígrafo, poeta e colecionador ao Masp (Museu de Arte de São Paulo), sendo repassado pelo empresário Assis Chateaubriand (1892-1968) para compor a coleção inicial do MAC como parte do projeto de constituição dos museus regionais do dono dos "Diários Associados".

Chang Dai-chien - Daniela Nader/UOL - Daniela Nader/UOL
Detalhe da assinatura de Chang Dai-chien no quadro "Paisagem Suíça"
Imagem: Daniela Nader/UOL

O valioso trabalho de Chang pôde ser identificado a partir de fotos enviadas pela reportagem ao museu, que comparou as imagens dos jornais da época com as obras de origem não identificada do acervo.

Segundo a diretora do MAC, Célia Labanca, o quadro recém-descoberto está entre as obras raras do museu pernambucano, figurando ao lado de brasileiros como Di Cavalcanti (1897-1976) e Candido Portinari (1903-1962) e de estrangeiros como o expressionista norte-americano Adolph Gottlieb (1903-1974) e o modernista taiwanês Richard Lin (1933-2011).

Enfrentando escassez de recursos, o museu vinculado ao governo de Pernambuco está parcialmente fechado e só poderá exibir essa pintura depois que forem feitas melhorias na estrutura do prédio, construído no século 18, o que ainda não tem previsão. "A situação física de todo o museu é lamentável, em consequência da absoluta falta de interesse, de compreensão e de sensibilidade de gestões estaduais, seguidamente", lamenta Labanca. Ela destaca, entretanto, que não há riscos para a preservação do acervo ou a segurança dos funcionários.

Reconhecimento na Ásia

Ao deixar a China continental, em 1949, após a Revolução Comunista, Chang refugiou-se em Hong Kong, fixando-se a partir de 1952 na Argentina. Em 1954, se mudou para Mogi das Cruzes, onde viveu durante quase duas décadas. Apesar de exilado, sua importância ainda é reconhecida na China, onde é admirado como um dos maiores mestres dos últimos 500 anos. Depois de morar na primeira metade dos anos 1970 na Califórnia, o "Picasso da China" se mudou para Taiwan, onde morreu em 1983.

A cidade em que Chang nasceu, Neijiang, na Província de Sichuan, sudoeste chinês, abriga o Centro de Pesquisas Chang Dai-chien, dedicado exclusivamente ao estudo da sua vida e obra. Segundo Luo Zongliang, diretor da instituição, o legado artístico de Chang na América do Sul é pouco conhecido por especialistas chineses, já que ele nunca mais voltou para sua terra natal.

"Quando pintou 'Paisagem Suíça', o estilo dele de tinta espirrada já estava muito maduro", explica ao UOL o pesquisador, cujo instituto é vinculado à Universidade Normal de Neijiang. "Apesar de o grande mestre nos ter deixado, ele nos transmitiu um infinito legado espiritual. A China continental e Taiwan criaram memoriais em tributo a ele, além de nosso Centro de Pesquisas, o que mostra como é imensa sua influência."

O presidente da China, Xi Jinping, durante visita ao Brasil, em 2014, discursou no Senado lembrando, dentre os pontos de contato cultural envolvendo os dois países, a presença de Chang Dai-chien em São Paulo, entre as décadas de 1950 e 1970, e seu Jardim das Oito Virtudes, com lagos, bonsais, flores, gibões, cisnes e rochas decorativas na melhor tradição oriental.

Pablo Picasso - Divulgação - Divulgação
Chang Dai-chien e Pablo Picasso
Imagem: Divulgação

Em 2019, quando serão celebrados os 120 anos de nascimento de Chang, Neijiang vai inaugurar um museu exclusivamente dedicado ao artista, com projeto arquitetônico de um escritório espanhol que busca ressaltar a integração entre Oriente e Ocidente, presente em importante fase expressionista do pintor.

Em 1956, Chang foi um dos protagonistas de um célebre encontro com Pablo Picasso, no sul da França, que ficou conhecido como a reunião dos dois maiores expoentes das artes ocidental e oriental.

Chang também ficou famoso internacionalmente por pintar falsificações de artistas de várias dinastias diferentes, causando constrangimento entre especialistas e museus na Ásia, Estados Unidos e Europa. Na arte chinesa, a cópia tem um valor pedagógico importante, e produzir uma reprodução que se aproxime de um mestre renomado garante reconhecimento ao pintor. Mas a prática gerou controvérsias no Ocidente ao relacionar o nome de Chang a falsificações deliberadas, como no episódio envolvendo a "Mona Lisa" da China, "The Riverbank", atribuída a Dong Yuan (do século 10), pertencente ao acervo do Museu Metropolitan de Nova York.

Legado na América do Sul

Em Porto Alegre, o quadro "Passeio ao Longo do Rio Apreciando as Flores das Ameixas" foi adquirido e doado para a Pinacoteca Ruben Berta, em 1966, no mesmo contexto de criação dos museus regionais. A pintura de Chang ficou no anonimato até 2003, quando uma reportagem da "Folha de S.Paulo" conseguiu identificar a obra, que estava sem autoria especificada.

"Passeio" - F. Zago/Studio Z/Pinacoteca Ruben Berta - F. Zago/Studio Z/Pinacoteca Ruben Berta
"Passeio ao Longo do Rio Apreciando as Flores das Ameixas"
Imagem: F. Zago/Studio Z/Pinacoteca Ruben Berta

Flávio Krawczyk, diretor do acervo artístico da Pinacoteca, ressalta a importância dessa obra "pelo fato de ser uma pintura onde é estabelecido um trânsito entre a tradição chinesa e os desdobramentos da contemporaneidade ocidental". "Trata-se, de fato, de uma peça representativa do profícuo contato entre diferentes vertentes estéticas que apenas um pintor com tremenda bagagem visual poderia criar."

Na Argentina, onde o artista chinês viveu no começo dos anos 1950, há também duas pinturas no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), em Buenos Aires. No entanto, são de fases anteriores ao abstracionismo adotado por Chang no final da década. "Anjo em Estilo Clássico Chinês", de 1952, e "Flor de Lótus", de 1950, trabalham com referenciais estéticos mais próximos da pintura tradicional chinesa, que tornou Chang famoso na Ásia antes de seu exílio no Ocidente. Apesar de contar com as valiosas obras, o MNBA tem dificuldades em exibi-las pela falta de afinidade com a maior parte da coleção, formada por arte ocidental.

No Brasil, Chang teve uma sala especial com suas obras na 6ª Bienal de São Paulo, em 1961, além de exposições no Masp, Museu de Arte Moderna de São Paulo e no Museu Nacional de Belas Artes do Rio. A última mostra individual dele na América do Sul aconteceu em junho de 1973, em A Galeria, na capital paulista.